quarta-feira, 4 de julho de 2012

Triste Futebol nos Tristes Trópicos – parte 1 – A saga de José Marin: da latrina da ditadura para o estrelato da CBF




Triste Futebol nos Tristes Trópicos – parte 1 – A saga de José Marin: da latrina da ditadura para o estrelato da CBF



LEONARDO SOARES DOS SANTOS



Historiador, professor do Pólo Universitário da UFF em Campos e flamenguista.


Se já não bastasse a indigência técnica e a ruína financeira de seus times, a CBF se vê comandada por um dos apóstolos da ditadura militar e do malufismo. Para completar, o futebol, patrimônio histórico e cultural do povo, vai sendo sequestrado por um canal de televisão....


O que mais falta ocorrer para o Brasil ter a decência de pedir a falência de seu futebol???





Era mais uma tarde daqueles insuportáveis anos da ditadura, mais precisamente em 75, época da “distensão lenta e gradual”. E falsa. A repressão continuou a ser brutal, fato que o próprio Geisel reconheceria anos mais tarde, quando afirmou em 93 que a tortura era justificável para evitar “um mal maior” e que era necessária para se “obter uma confissão”.



O povo sofria com o salário arrochado. Falta de liberdade política. Música de péssima qualidade. Ronnie Von, por exemplo, não media consequências ao emplacar canções que entupiam os ouvidos dos incautos da época, hinos (ao mal gosto) cujos títulos não deixavam dúvida de sua índole sanguinária: “Baby de Tal”, “Viva o Chope Escuro”, “Riso Flor”, “Seu Olhar no Meu”, “Cavaleiro de Aruanda” e “Rosto Suado”. Na esteira dos crimes contra a saúde sonora da pobre gente trabalhadora tínhamos ainda um cartel (de drogas pesadas) pra ninguém botar defeito: Pimpinella entoava “Siga Seu Rumo”, Mauro Celso reinventava as entranhas do sistema hegeliano com seu “Farofa-fá-fá”, Jane e Herondi chocavam com o seu chocante “Não se Vá” e Lilian (já sem Leno) ainda tinha peito (voz nunca teve...) para berrar “Eu Sou Rebelde”. E o que falar dos The Silver Jets, do inabalável Reginaldo Rossi?



A mais sofrida sem dúvida, era a torcida do Flamengo, que tinha que engolir Fio Maravilha e Michila no ataque (de risos ou de nervos?) do time. Eram irmãos. Segundo Jorge Ben, o primeiro o encantava com “jogadas celestiais”. Baita de um gozador o autor da “Banda do Zé Pretinho”.



Depois dela, em matéria de sofrimento, vinha a sociedade paulista. Que convivia com um legislativo estadual da pior espécie. A sessão do dia 9 de novembro daquele ano é pra lá de emblemática. Nela, o deputado do ARENA, Wadih Helu dava informes sobre os festejos que cercaram a inauguração de uma bica em Capão Bonito, no sul do estado. Verdadeiro ritual cívico e corriqueiro, alimentado com dinheiro público, bem ao gosto dos politiqueiros de seu nível. Como se não bastasse, ele protestava veementemente contra a ausência da TV Cultura na cobertura de tal engodo. O que se devia segundo ele a grande “infiltração de elementos de esquerda no Canal”, a “TV Vietnam Cultura de SP” segundo ele, só mostrava em seus jornais miséria, pobreza, desgraça, mas não mostrava o Brasil como ele realmente era, “em pleno desenvolvimento”, um “verdadeiro oásis no mundo de hoje”. Helu estava possesso. E constante irritação e discursos acalorados seriam sua marca até seu último mandato. No início da década de 2000 ele, na mesma assembleia, se disse favorável a extinção de todas as praças públicas da cidade de SP e a construção em seu lugar de Shoppings e estacionamentos, porque segundo ele as praças eram lugar de “vagabundos, drogados e delinquentes”.



Mas naquela sombria tarde um outro parlamentar, também do ARENA, se encarregaria de lhe dirigir palavras apaziguadoras. Mas só para Wadih. Por que na verdade só ajudou a incendiar o clima e empurrar a polícia política contra a TV Cultura. Dirigindo-se ao governador do estado, o deputado praticamente implorava: “é preciso mais do que nunca uma providência, a fim de que a tranquilidade volte a reinar não só nesta Casa, mas, principalmente, nos lares paulistanos”. Seu recado para o DOI-CODI era claro: “o que não pode continuar é essa omissão”.



Mas Jose Maria Marin, esse é o seu nome, tinha sido muito mais contundente dois dias antes. E com a habilidade própria de políticos da sua cepa, ele deixaria nas entrelinhas uma mensagem claríssima sobre o que era necessário fazer para resolver a “presença comunizante” naquela TV. Em seu discurso ele faz questão de prestar os “melhores cumprimentos a um homem que, de há muito, vem prestando relevantes serviços à coletividade”. Ele e sua “valorosa equipe”. O nome desse homem: Sérgio Fleury. Delegado de Polícia, chefe do DOI-CODI, coordenador das sessões que extraíam “depoimentos” dos presos políticos e chefe – simples assim! – do famigerado “Esquadrão da Morte” de SP. Homem esse, continuava Marin sobre Fleury, “exemplar chefe de família”, “cumpridor de seus deveres e, acima de tudo, com uma vocação das mais raras, das mais elogiáveis”. Compungindo pelo seu próprio elogio, Marin nos confessa que não consegue “entender porque um policial desse quilate, um homem que vem dedicando sua vida inteiramente ao combate ao crime, um homem que por várias vezes colocou em risco não só sua própria vida, mas a vida de seus familiares, não tenha até hoje merecido a devida compreensão de todos aqueles que têm a obrigação de zelar pela tranquilidade e segurança dos lares de São Paulo”. Esses cumprimentos se referiam a uma recente prisão efetuada por Fleury. Esse é um detalhe muito importante.



Porque, na verdade, Marin buscava dirigir a esse delegado uma sinistra mensagem: “Não foi este o primeiro trabalho de capital importância que o delegado Sérgio Paranhos Fleury obteve em favor da coletividade, e tenho certeza absoluta de que também não será o último”.



Fleury parece ter entendido muito bem o recado. Insuflado por tantos “elogios”, poucos dias depois detonava uma operação fulminante na TV Cultura, levando dali direto para os porões do DOI-CODI, Vladimir Herzog, o Vlado. Que seria brutalmente espancado até o último suspiro, o que se daria no dia 25 de outubro. Exatamente 18 dias depois de Marin pronunciar a seguinte ode: “Conhecendo de perto seu caráter, sua vocação de servir, podemos afiançar, sem dúvida alguma, que Sérgio Fleury a ela se dedica com o maior carinho, sem medir esforços ou sacrifícios, para honrar não só a polícia de SP, mas acima de tudo, seu título de delegado de polícia”. A morte de Vlado até hoje nunca foi inteiramente esclarecida. A ditadura desapareceria uma década depois, até Sérgio Fleury apareceria morto – claro que misteriosamente – no litoral paulista. Pra completar: seria enterrado sem passar por autópsia. Eram muitos os obstáculos para esclarecer a morte de Vlado. Só não foi maior do que a recusa do governo de Vanda, quero dizer, da ex-guerrilheira Dilma, em reabrir as investigações sobre o caso, mesmo com as súplicas da OEA. Vlado, sua memória, a dor de sua família e a justiça que ele merecia foram descartados em alguma gaveta do gabinete da “mãe dos brasileiros”.



Mas voltemos ao nosso personagem (canastrão). Ainda antes do fim da ditadura, Marin se tornaria principal braço-direito de Paulo Salim Maluf. Seria seu vice por dois mandatos. Por conta da desincompatibilização de Maluf, que tentaria se lançar candidato a presidente. Ameaça que por pouco não se concretizou. Marin assume o governo de SP por 10 meses entre 82 e 83. Servindo-se do instituto do Governador Biônico. Ou seja, Marin foi alçado ao cargo de governador sem ter tido um voto – nem dele mesmo. Excrescência da ditadura, no afã de dar uma fachada democrática ao regime. Mas uma democracia sem povo – o sonho de consumo das Organizações Globo....










(fim da primeira parte)




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