domingo, 23 de março de 2014











Já seria estranho tentar entender uma razão(!?), uma explicação que fosse na atitude de um cidadão que intempestivamente se volta com tanta raiva e rancor contra uma iniciativa que visa desvendar pura e simplesmente a verdade sobre o ocorrido num período tão nefasto da história de um país. Diga-se de passagem: estamos falando da investigação de um suposto assassinato de uma pessoa que só era a presidente do país num momento em que grupelhos apoiados na burguesia nacional e num governo estrangeiro acostumado em apoiar golpes mundo afora decidiram detonar a sua derrubada através do recurso às armas, visando restabelecer a democracia (sic) e o respeito à família, à propriedade e o amor a Deus (lindo, não?).

Mas não é só estranho como causa profundo pavor que tamanha demonstração de destempero, irracionalidade e estupidez gratuita parta de um historiador. É não apenas enervante, mas revoltante. E o pior: um historiador que também é professor. O que mostra a que nível chegou o ensino de história nesse país.

Tal é o espetáculo de horror oferecido pelo senhor Marco Antonio Villa em seu histérico panfleto (disfarçado de artigo de opinião e porcamente fundamentado) publicado no dia 14 de janeiro de 2014, e que se intitula “Jango e o realismo fantástico”. Mas comecemos pelo começo. Destacando a parte boa do texto do professor. Atentemos para a segunda metade do libelo - a de que o Brasil é de um realismo fantástico. Notem que ele procura ser até didático:

O Brasil é um país fantástico. Mais ainda, é um país do realismo fantástico, onde ficção se mistura com história e produz releituras ao sabor dos acontecimentos. A última tem como tema a morte do ex-presidente João Goulart, o Jango, na Argentina.


Pronto: são três linhas que explicam uma parte do título e que poderia explicar uma outra. Pois só mesmo num país fantasticamente surreal, pobre e subdesenvolvido intelectualmente para tornar possível uma figura desse nível escrever num dos maiores jornais do país.

Claro, é fácil deduzir que todo o resto é dedicado a explicar Jango, o João Goulart (a outra metade). Sim, é preciso lembrar ao leitor mais desavisado que não percam seu tempo procurando saber quem foi Jango gastando a vista com pesquisas sérias e honestas na biblioteca ou em livrarias e sebos virtuais. Muito menos perder tempo lendo a volumosa biografia sobre o dito cujo escrita pelo historiador Jorge Ferreiras há alguns anos atrás. Qual o sentido de tentar saber quem foi o protegido de Getúlio por meio de uma obra de cerca de 700 páginas se temos diante de nossos olhos um texto também sério(risos) e honesto(mais risos) do professor Villa – e que nos bate tudo, tim-tim por tim-tim em menos de uma lauda? Quem é besta?

O homem – sem ironias... – é fantástico – idem... – já que não só faz um raio-x de Jango como prova por A mais B que ele não foi assassinado. E é aí que o professor Villa extrapola o limite que é dado a todo ser humano em brincar e fazer chacota com o neurônio alheio.

E me parece pouco compreensível que uma questão que mereceria, no mínimo, a consideração e exame de profissionais do campo historiográfico, seja alvo de tanto chilique e destempero de um sujeito que deveria ter um compromisso sincero e fraterno com a verdade e o respeito ao estudo de questões tão importantes.

Mas o mais bizarro é verificarmos algumas aberrações presentes na argumentação de tão respeitado historiador. É um escândalo que deveria ser matéria de um programa do Ratinho, mas não faz mal tentar destrinchar algo tão baixo e vulgar uma só vez na vida.

Após o primeiro parágrafo, Villa sai da História para entrar na Medicina. Num misto de Sherlock e House, ele fulmina com a Comissão da Verdade e põe todos os pingos nos is. Diz o doutor no alto do seu jaleco pintado não de branco, mas amarelo-azul, a cor dos tucanos:

Jango era um cardiopata. E de longa data. No México, a 10 de abril de 1962, em visita oficial, assistindo a uma exibição do balé folclórico mexicano, no Teatro Belas Artes, o presidente teve um ataque cardíaco. Ficou desfalecido por um minuto. Atendido por médicos mexicanos, ficou impossibilitado de continuar a cumprir a agenda presidencial, sendo substituído por San Tiago Dantas. No retorno ao Brasil, o grande assunto era o estado de saúde de Jango e a possibilidade de que renunciasse à Presidência. Afinal, era o segundo ataque cardíaco em apenas oito meses.


Vejam que formidável. O fato de Jango ser um cardiopata resolve tudo. Ele era cardiopata. Morreu por ser cardiopata. E pronto! Acabou. Não tem conversa. Chega.

É assim Gregory Villa? Bom, fica fácil imaginar que o senhor não seja mesmo um historiador (ou seria como historiador um excelente médico?). Pois como imaginar que a discussão (e o encerramento) de uma questão tão complexa seja tratada de maneira tão rasteira e com tamanha truculência. Só para que não nos alonguemos sobre esse ponto: é muito provável que Jango por ter sido um cardiopata tenha morrido do coração. Provável mas não comprovado de maneira absoluta. E isso não prova nada. Pois teríamos que assumir a absurda idéia de que a ditadura nunca matou pessoas com doenças crônicas, ou seja, pessoas portadoras de cardiopatia por exemplo. Isso não é apenas ridículo como falso. Que o diga Câmara Ferreira, um dos líderes da ALN e que a despeito do frágil coração foi surrado e alvo de choques até o colapso cardíaco que lhe ceifou a vida. Claro, ele estava num pau-de-arara no DOPS da rua Tutóia, mas e daí?, era cardiopata e isso é o que importa. Quem o matou foi o coração não o carrasco do DOI-CODI que subia e descia com a chave do choque elétrico.

O dr. Villa segue na sua tentativa de mostrar que de médico e louco todo mundo tem um pouco e exagera na dose – pois não precisava: volta a frisar que o sujeito sofria do coração, mas acrescenta: tinha uma “vida sedentária, alimentação inadequada, excesso no consumo de bebidas e vivendo em permanente estresse”. Mais uma vez a indagação se impõe: a ditadura nunca matou figuras como Jango? Só caçou e dizimou atletas de iron man, evangélicos abstêmios e seguidores do budismo? Mas até onde vai a capacidade de formular argumentos tão pobres, para não dizer boçais? Ah, vocês já vão ver...

O douto médico e dublê de historiador decide rasgar o seu jaleco e acabar com toda essa estória, dando umas belas bofetadas no personagem que a Comissão da Verdade pretende endeusar:

A transformação de Jango em um perigoso adversário do regime militar — tanto que o seu assassinato teria sido planejado pela Operação Condor — não passa de uma farsa. No exílio uruguaio, especialmente nos anos 1970, não tinha qualquer atuação política.



Aqui o espetáculo de horror do Sr. Villa talvez chegue ao ponto culminante (o Everest da patifaria intelectual): em primeiro lugar ele parece estar falando não de uma ditadura, mas de um governo composto de grupos e figuras plácidas, ingênuas, que nunca se articularam para perseguir, trucidar, esmagar, torturar e executar pessoas nos porões das delegacias, nos matagais, por esse Brasil afora e até pelo mundo. Como se fosse um governo que não estivesse nem aí para as alianças, acordos e redes que eram tecidas e tramadas por alguns exilados no exterior. Como se os grupos de extrema-direita não temessem o impacto de uma futura volta triunfal de Jango ao cenário político nacional e as repercussões de uma vitória eleitoral sua numa conjuntura pós-regime militar.

É como se a ditadura nunca se importasse em se informar e manter sob constante monitoramento tais figuras, com ajuda inclusive de serviços secretos de outros países, articulando inclusive uma política de cooperação para a tortura e assassinato de militantes políticos – como a Operação Condor, que reuniu as sangrentas ditaduras do cone sul da América, com anuência de uma certa nação do norte.

Em segundo lugar, é risível o argumento de que por não ter – segundo suas palavras – “nenhuma atuação política” livrasse ele de todo perigo e sortilégio. Como se a ditadura só perseguisse, monitorasse, torturasse e matasse pessoas “perigosas”, inimigos comprovados das instituições e rebeldes que combatiam sem perder la ternura jamás. Afinal, como explicar que a ditadura tenha fichado personalidades tão revolucionárias como Elza Soares, Alexandre Frota e  Dercy Gonçalves (sim, a mesma da Perereca fora da gaiola...) ?

E novamente, só para não perdermos tempo com tanta sandice, eu pergunto ao douto médico: qual era a atuação política de Carlos Alexandre Azevedo, quando foi barbaramente espancado pelo DOPS paulista em 1974, quando tinha apenas 1 ano e oito meses? O que esse bebê estaria escondendo: algum contato feito com as Brigadas Vermelhas? Estaria ele rearticulando a ALN, a VPR ou o COLINA? Estaria ele planejando seqüestrar algum embaixador ou estaria tramando a morte de algum general da Linha-Dura?

E prossegue Villa

Tudo não passa de mais uma tentativa de mitificação, da hagiografia política sempre tão presente no Brasil. O figurino de democrata, reformista e comprometido com os deserdados foi novamente retirado do empoeirado armário. Agora pelos seus antigos adversários, os petistas. Mero oportunismo.



É isso mesmo, “antigos adversários”? Os petistas eram antigos adversários de Jango? Como um partido criado apenas em 1980 poderia ser adversário de um sujeito que morreu em 1976? Como? Será que depois de ter deixado a História, Villa estaria saindo também da Medicina, mas para agora entrar no campo da vidência, no mundo dos espíritos, no além?



E olha que o autor faz gracinha com os hábitos etílicos do ex-presidente: mas a pergunta que fica é – será que só ele bebia muito? Com a palavra, Villa.



Mas as surpresas não param por aqui. Como se não bastasse o “historiador” decide baixar mais ainda o nível do seu panfleto, atacando não as idéias de Jango ou apenas insistindo na defesa da ditadura militar – sim, porque Villa vem novamente com aquele argumento barato dos próprios militares de que a direita deu um golpe para a esquerda não dar o dela. Sobre Jango ele afirma (com base em que não se sabe): “Era tributário de uma tradição golpista, típica da política brasileira da época.”



Não satisfeito Villa deixa decididamente de discutir uma questão política para entrar na seara da fofoquinha, do ataque pessoal a Jango, fazendo do seu texto um instrumento asqueroso, uma peça mesquinha, de uma pusilanimidade sem par. É como se o fato de Jango ser uma coisa ou outra justificasse o golpe contra ele ou o seu assassinato (que o Villa jura que isso nunca aconteceu). O historiador do SUS da desonestidade intelectual defende que Jango era “um primitivo, um pobre de caráter”. Mais a frente, o historiador tenta rebaixar o presidente demonstrando (na sua mente) que o Jango não lia nem relatório de 3 páginas.



Mas novamente a pergunta se impõe: o que aspectos do caráter dito cujo, insinuados de maneira leviana e covarde dizem respeito ao golpe que o tirou do poder? E mais: o que isso pode justificar o seu possível assassinato? O que uma coisa tem a ver com a outra?



É inacreditável a ideologia do autor. O seu anti-esquerdismo lhe deixa cego. Chega a ser grotesca a sua postura: raivosa, deselegante, fanática. É absurda a agressividade, a falta de argumentos, a falta de compostura para debater uma questão tão simples. Como se não bastasse, o autor finaliza o seu raivoso e insano arrazoado justificando não a execução de Jango, mas a sua deposição pelos militares, uma vergonha da nossa história, lamentado por muitos, mas não sei se pelo médico nas horas vagas e coveiro da ciência histórica:

Deixou um país dividido, uma economia em estado caótico e com as instituições desmoralizadas. E abriu caminho para duas décadas de arbítrio.

Ora, quem se desmoralizou aqui professor?

Com que cara o senhor pode defender essas coisas?