Antes de começar esse texto, recomendo a quem tem o
estômago muito frágil, a tentar poupar o seu organismo. Trata-se de uma reação
ao texto do estoriador Marco Antonio Villa (“Gigolôs da memória”, In: O Globo,
8/4/2014) - e isso já diz muito. Pois terei
que citar alguns argumentos, teses, idéias e as suas agressões á lógica, que de
tão surreais e deploráveis, sei lá, nunca é bom arriscar. Não citarei todos –
também pudera, não quero sofrer uma penalidade da inspeção sanitária.
O artigo publicado no pasquim global faz uma
denúncia bombástica contra a tentativa de busca da verdade e dos podres do
período da Ditadura. Mais do que isso: sua indignação se volta contra o fato
daqueles que sobreviveram aos anos de chumbo se manifestarem e tentarem
construir a sua visão sobre o Golpe. E, assim, Villa inicia a sessão de
espancamento do argumento histórico – chega a arrepiar. Respiremos fundo:
A lembrança dos 50 anos da queda
de João Goulart ocupou amplo espaço na imprensa. Nenhum outro acontecimento da
história do Brasil foi tão debatido meio século depois do ocorrido. Para um
otimista, isto poderia representar um bom sinal. Afinal, o nosso país tem uma
estranha característica de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a reflexão e o
debate sobre 1964 e o regime militar acabaram sendo dominados justamente por
aqueles que conduziram o país à crise da república populista e que negaram os
valores democráticos nos anos 1960-1970.
Sem dúvida. O ideal seria que a reflexão fosse
conduzida pela trupe formada por Jair Bolsonaro, Brilhante Ustra, Paulo Maluf,
Jarbas Passarinho, Delfim Neto, Paulo Malhães, Olavo de Carvalho, Newton
Cerqueira e José Marín.
Dessa trupe, ou melhor, desse verdadeiro dream team dos Anos de Chumbo, não faltariam
reflexões isentas, auto-críticas, mea culpas. Uma pena já não podermos contar com
as prestimosas colaborações de figuras da estirpe de um Sérgio Fleury, Cecil
Borer, Felinto Müller, General Médici, Costa e Silva e Pena Boto. A filosofia da História tinha tudo para ser reinventada.
Uma constelação de Democratas puro-sangue, que não
pensavam outra coisa que não elevar ao topo mais alto as instituições e valores
republicanos. Eram tão fervorosos na defesa dos chamados “valores democráticos
nos anos 1960-1970”, que eles acabaram criando e fomentando verdadeiras
máquinas de produção de liberdades e bondades para combater a tortura e terror,
um sem número de perseguições, cassações, execuções, ocultação de cadáveres,
choques, afogamentos e estupros. Por que isso era coisa de Cuba. No Brasil dos
militares não, por favor.
Mais adiante, Villa faz mais revelações bombásticas - é, o moço gosta de bombas (hum...). Jango
não era um “presidente reformista”, nunca havia sido um “defensor dos valores
democráticos” e muito menos um “administrador capaz”. Sim, isso mesmo. Mas como?
Baseado em quê? Utilizando dados estatísticos, pesquisas de opinião da época
(como a do Ibope), documentos secretos de Estado, cartas...?
Não.
O douto historiador se baseia numa entrevista dada
à Playboy por Celso Furtado e numa declaração de Samuel Wainer, de que Jango
lhe pedia para passar a sacolinha junto a empreiteiros:
“uma vez por mês, ou a cada dois
meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de
cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu poderia ter ficado
multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei.” (“Minha razão de viver”, p.
238).
O que, se for verdadeira a declaração de Wainer, prova que os laços do presidente Jango com a burguesia brasileira não eram pequenos. O
que joga por terra a tese do pendor comunista do grande latifundiário e ex-protegido de Vargas. Mas não, Villa
prefere lançar o trecho isolado para plantar a semente da dúvida sobre o
caráter de João Goulart. Mas o tiro sai pela culatra. Seriam as próprias
empreiteiras uma das mais acintosamente beneficiadas pelo Regime militar. Os seus
grandes, megalomaníacos e fracassados (e criminosos) empreendimentos o provam. Então
Villa, seria o Regime Militar composto de governantes mais “primitivos” e “pobres
de caráter” do que Jango? Ou pior: seriam os militares os verdadeiros comunistas?
Conforme avançamos na leitura do escrito de Villa o
sentimento de horror e escândalo só aumenta. Pior: é realmente estarrecedor
que esse senhor apresente realmente seus textos sob o rótulo de análise
histórica.
Porque é realmente inimaginável que nenhum professor de sua
época tenha lhe lembrado que a história se estuda e se reconstitui com o maior
número de fontes possíveis, com o cotejamento de versões e visões, as mais
distintas e divergentes, eis aí o grande sabor do ofício de Heródoto, Varnhagen
e Bloch. Mas Villa parece ter se baseado em outros gigantes, não da História,
mas da comédia pastelão. Pois sem a menor cerimônia ou pudor ele simplesmente
repete, tal como um papagaio (ou seria tucano?) o mesmo blá-bla-blá dos
guardiões da Pátria dos valores sagrados da religião e da família que
perpetraram a Revolução Redentora de 64.
Mais adiante o douto
guardião da Verdadeira Memória (a da Revolução Redentora) desiste de reinventar
a roda da metodologia da ciência histórica (ainda bem!) e de maneira
preguiçosa, quase manhosa, deixa-se guiar pela fala dos Revolucionários.
Respirem fundo e assistam - se puderem - as linhas abaixo:
Não
é possível ignorar o caos instalado no país em março de 1964. A quebra da
hierarquia militar incentivada pelo presidente da República é sabidamente
conhecida. A gravidade da crise econômica e a inépcia governamental em
encontrar um caminho que retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O
desinteresse de Jango de buscar uma solução negociada para o impasse não pode
ser contestado: é fato. O apego às vazias palavras de ordem como um meio de
ocultar a incompetência político-administrativa era conhecido.
Caos, quebra de hierarquia, crise econômica, incompetência, demagogia barata,
desprezo ao Congresso: ele está se referindo ao governo tucano do professor
sociólogo, Privatizando Henrique Cardoso? Não. É de Jango mesmo. Mas o que há
de novo aqui? Nada. Todos que derrubaram o governo democraticamente eleito de
João Goulart insistem na mesma empulhação. Mas que isso parta de um militar
alquebrado, em estágio avançado de demência, no alto do seu amargor
reacionário, vá lá; mas ter que ler isso escrito por alguém que se intitula
historiador (mesmo que na verdade seja um estoriador), ah, não! Tenha dó de nós
sr. Villa!
Você, sofrido leitor, acha que acabou ou acham que o pior já passou? Na, na ni
na não. O triste espetáculo desse artigo mal começou. Essa é a triste verdade.
Nem bem piscamos, e ele prossegue no seu deprimente empreendimento.
JK imaginou que Castello Branco era o marechal Lott e que 1964 era a repetição
— um pouco mais agudizada — da crise de 1955. Errou feio. Mas não foi o único.
Daí a necessidade de separar 1964 do restante do regime militar. Muitos que
foram favoráveis à substituição de Jango logo se afastaram quando ficou patente
a violação do acordado com a cúpula militar. Associar o apoio ao que se
imaginava como um breve interregno militar com os desmandos do regime que durou
duas décadas é pura hipocrisia.
Ah, então você quer me dizer que figuras do quilate e da vivência de um Carlos
Lacerda e JK foram - vejam só... - enganados tal como dois bebezinhos, mocinhos
inocentes, pudicos interioranos, recém-chegados das fazendolas do papá e do vô, e que mal haviam
saído das barras da saia da mãezinha? Ainda chorosos por não poder mais comer os bolos de tia Benta? E, vejam, foram marotamente ludibriados
por dúzias de milicos sem nenhuma tarimba política? (Por Deus Villa, assim a
minha repulsa por você começa a ser física!)
A questão
é que Villa imagina demais. E assim parece perder o contato com a realidade.
Assim a gente fica na dúvida sobre quem pode ter inspirado o autor nessas elucubrações
tão fantasiosas. Ele acaba não diferenciando o plano da realidade histórica e o
plano da imaginação surrealista. Ele diz que ninguém da cúpula havia imaginado
uma intervenção de longa duração. A impressão que se tem é que os golpistas
eram figuras abiloladas, ingênuas, quase infantis. Que nem sabiam o que estavam
fazendo...
Tudo
estaria perfeito nesta análise inverídica e deplorável sobre as expectativas
que os golpistas tinham do Regime, mas Villa se esquece – talvez de propósito –
que havia uma linha dura que sempre defendeu a permanência da ditadura por
décadas.
São perguntas
básicas, que qualquer criança minimamente alfabetizada conseguiria responder em
15 minutos – e isso sem colar....
Mas
Villa talvez precise de 21 anos e, mesmo assim, é bem capaz de pedir ajuda aos
militares.
E como
eu prometi ao meu estômago, eu passo a me reportar às considerações finais do
Brilhante (êpa!) contador de estórias.
É claro
que todo esse triste espetáculo de humilhação e selvageria contra o argumento
histórico, não poderia se encerrar sem antes investir pesado com toda a sua
fúria e ressentimento intelectual contra a memória da luta de resistência
armada contra o Regime Militar.
E,
logo de cara, o ficcionista destemperado se deixa trair:
Ainda no terreno das
falácias, a rememoração da luta armada como instrumento de combate e vitória
contra o regime foi patética. Nada mais falso. Nenhum daqueles grupos — alguns
com duas dúzias de militantes — defendeu em momento algum o regime democrático.
Mas ora, como um grupelho com “duas dúzias de militantes” pôde
se constituir numa ameaça à democracia? E, mais grave, como justificar uma
repressão tão brutal e sórdida contra grupelhos tão insignificantes?
Além disso, o autor se serve da surrada bravata – de que os
grupelhos “eram adeptos da ditadura militar do proletariado” ou de que nenhum
deles defendiam as “liberdades” democráticas, para tentar igualá-los aos
carniceiros da Oban, do DOI-Codi e dos Esquadrões da Morte.
Nem discuto o gosto do autor em chafurdar o seu argumento no
mesmo lodaçal retórico dos grandes defensores do Regime Militar, mas questiono
sim a sua extrema preguiça intelectual – prefiro acreditar nisso, juro que
prefiro – em explicitar as concepções que informavam o entendimento da esmagadora maioria desses
militantes sobre o que seria uma verdadeira democracia, realmente efetiva, não a de
fachada liberal, puramente formal, ritualística, processual, que consagra e
perpetua desigualdades, discriminações e exclusões – e movida pelo poder do
dinheiro e do jogo de influências. E todos aqueles militantes lutavam não só
contra a Ditadura, mas também contra essa “Democracia” de festim sim. E nunca
esconderam isso. Esconder ficava e ainda fica por parte dos agentes que
torturaram, mataram e praticaram o terror, mas até hoje se negam a revelar seus
crimes.
Só mesmo um cérebro baldio ou alguém profundamente
ressentido pela luta de quem acreditava em outra democracia (que é o caso do Sr.
Villa) para classificar tais militantes da luta armada de “irmãos xipófagos” de
ditadores, carniceiros e torturadores do Regime Militar. É como igualar os membros
da Resistência Francesa às figuras mais asquerosas das SS hitleristas, os Partizans iugoslavos aos beleguins da Gestappo, e,
os heróis do Gueto de Varsóvia aos carrascos que serviam nos campos de
concentração nazista. Francamente rapaz.
E ainda diz ele, o torturador da integridade intelectual:
Os extremos tinham o mesmo desprezo
pelo voto popular. Quando ouviam falar em democracia, tinham vontade de sacar
os revólveres ou acionar os aparelhos de tortura.
Na verdade, quando leio um artigo como o deste
professor, a vontade que tenho é de puxar a corda da descarga do meu vaso
sanitário. Mas seria poluir de maneira criminosa a praia de minha cidade.
Leonardo Soares dos Santos é professor de História da UFF.