quarta-feira, 30 de abril de 2014




Saiu no CORREIO DA CIDADANIA







 Escrito por Leonardo Soares   
Quarta, 30 de Abril de 2014 

O artigo do “filósofo” neoliberal Denis Rosenfield (“Anistia sim!”, O Globo, 21/04/14) achincalha não apenas a construção de uma memória sobre o Golpe Militar de 1964 (ao qual ele se refere como “contragolpe”), como tenta defender a manutenção irrestrita da falta de punição aos agentes da Ditadura empresarial-militar que sequestrou a democracia do país por 21 anos e que implantou o regime mais sórdido e criminoso da história. Para esse notório pensador das hostes conservadoras, seria um crime, sim, encostar o dedo nessa corja, fazendo-os responder por tudo que eles tramaram e executaram durante o período de exceção por eles patrocinado.


(...)

Artigo completo AQUI.

domingo, 27 de abril de 2014



É deveras impressionante a forma como Marco Antonio Villa tenta reconstruir a memória do Golpe de 1964. Não satisfeito em desprezar os fatos concretos - tanto os de conhecimento público a décadas como os que têm sido revelados a pouco menos tempo - o contador de estórias (de qualidade duvidosa) agora tenta esbofetear qualquer rigor científico que a ciência histórica possa ter.

No seu afã de provar que o Golpe Militar de 64 foi democrático, patriótico, cristão e revolucionário, o memorialista da Revolução Redentora tenta atacar a figura pessoal de João Goulart. Ele - o estoriador - vem recorrentemente nas suas várias e lamentáveis manifestações investindo na tese de que Jango era o verdadeiro golpista (ele teria mandado cercar o Congresso), era corrupto (recebia dinheiro de empreiteira) e que era um sujeito desprovido de caráter.

Tudo isso justificaria a eclosão de um Golpe brutal (que Villa afirma não ter sido tão brutal assim) em 64 (que segundo o contador de lorota, só começou em 68) e que duraria até 85 (até 79, corrige imediatamente o memorialista imparcial).

Em que tipo de mente, o caráter e os defeitos de um governante podem legitimar e justificar o sequestro do Estado de Direito num país? Em qualquer país decente que se imagine, tal postura intelectual, enormemente deprimente e desqualificada, seria devidamente rechaçada. Mas aqui neste país não: ela ganha ares de teoria de capa da Science.


A última estripulia de Villa é o mantra de que Jango, além de toda a incompetência, era um sujeito sem nenhuma estatura moral. E para tanto Villa se fundamenta em declarações de Celso Furtado, dadas em abril de 1999 (terá sido no dia 1°?), no qual teria afirmado que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”. 

O curioso é constatarmos a fonte de tal achado de Villa. A entrevista de Furtado, a chave de sua revolução interpretativa sobre o Golpe - e que prova que foi na verdade uma Revolução - se baseia numa entrevista dada a Revista masculina de nome Playboy. Isso mesmo meus caros, para provar a sua horripilante interpretação Villa apela para uma revista pornográfica. E com ela sempre debaixo do braço o Villa se volta com enorme truculência intelectual para contestar qualquer afirmação de que o Golpe de 64 instaurou um período de trevas para a democracia representativa. O desespero do historiador em positivar a "Revolução" de 64 é tanta, que ele não pensa duas vezes em unir História e Saliência.





A grande fonte das descobertas de Marco Villa. A profunda Playboy de abril de 99.



Não se quer aqui de maneira alguma desacreditar o depoimento de Celso, mas o que mais irrita na imparcialidade de Villa é o fato dele ignorar outros aspectos de sua entrevista. Villa só extrai aquilo que supostamente confirme a sua crença de que o Golpe tenha sido verdadeiramente revolucionário e redentor (ou um contra-golpe). Ele passa por cima de diversas outras denúncias de Celso. Fixando-se apenas naquele trecho, isolando-o de todo um contexto, parece até que Celso tenha tido a mesma concepção (torpe e nefasta) de Villa: de que o Golpe nos livrou de um presidente nefasto e torpe.

Não, não foi bem assim sr. Villa! E o senhor sabe disso. Basta ler direito e de maneira minimamente honesta as palavras de Celso.

Ora, o que terá impedido Villa de prestar atenção nas outras partes da entrevista? É bem provável que uma revista como a Playboy leve a isso. Estou apenas supondo - que fique claro! - que ele tenha de distraído com outra seções da revista masculina. O que é perfeitamente natural. É como se Villa se trancasse num banheiro com a revistinha e não quisesse ouvir mais ninguém.

Caros, vejamos, não é uma tarefa fácil manter a concentração, mesmo que numa análise séria, rigorosa, criteriosa e desapaixonada da entrevista de Celso Furtado na Playboy de abril de 1999. Pois mal abrimos e isso assim se nos abre:


O conteúdo da entrevista de Celso Furtado parece fascinar a todos.


A despeito de tantas distrações - bobas, é claro, nada que afete a missão de um historiador comprometido com a verdade e com o rigor do ofício do Bloch - é indisfarçável o gozo do historiador em destruir com a imagem democrática de Jango. E usa Celso como principal arma.

Mas se Villa fosse mais cuidadoso ele poderia se basear em outros depoimentos do mesmo personagem. Vejamos o que ele diz numa entrevista dada ao Estado de São Paulo (31/03/2004), mais ou menos na mesma época. Uma visão mais equilibrada se nos apresenta.
 

Perguntado sobre os responsáveis pelo Golpe, Celso segue imputando grande responsabilidade a Jango, mas......


Tenho a impressão que a responsabilidade do golpe cabe tanto ao Jango quanto ao Lacerda. A minha impressão é que o problema da sucessão do Jango seria muito difícil e complicado, no caso de vitória do Lacerda. João Goulart teria que enfrentar um guerreiro nato que só crescia e se agigantava brigando.



Sobre a tal ameaça do fantasma do Comunismo (que o historiador segue dando tanto crédito) Celso é taxativo:


 No Brasil, os militares acreditaram no espantalho e acabaram sendo enganados, como também foram enganados os que acreditaram que os militares só permaneceriam dois anos no poder, antes de devolvê-lo aos civis. Esse foi o caso do grupo mineiro, do Magalhães Pinto e outros, todos a espera da tradicional acomodação que acabou não acontecendo.



Mas disso Villa não quer saber. Ele só quer saber de se ocupar da Playboy - isto é, da entrevista de Celso na mesma. Pronunciamentos ponderados como esse de Celso, analisando vários ângulos e possibilidades de uma mesma questão, cogitando diferentes hipóteses, ou seja, tentando perceber a complexidade de um processo histórico, não, isso não interessa a Villa. O que interessa é mostrar a fraqueza do Jango.

Ou seria uma questão de distração? Mas o que teria distraído tanto ao Villa?




Débora Stroligo também se mostra surpresa com as revelações de Furtado.




E, cá pra nós, passados tantos anos, e de tanto Villa ocupar uma mão com a Playboy de abril de 99 e, com a outra mão, com seus cinco dedos, escrever tanto texto gozado contra Jango, alguém aí teria coragem de pedir essa revista emprestada a ele?



quinta-feira, 17 de abril de 2014







Antes de começar esse texto, recomendo a quem tem o estômago muito frágil, a tentar poupar o seu organismo. Trata-se de uma reação ao texto do estoriador Marco Antonio Villa (“Gigolôs da memória”, In: O Globo, 8/4/2014) -  e isso já diz muito. Pois terei que citar alguns argumentos, teses, idéias e as suas agressões á lógica, que de tão surreais e deploráveis, sei lá, nunca é bom arriscar. Não citarei todos – também pudera, não quero sofrer uma penalidade da inspeção sanitária.

O artigo publicado no pasquim global faz uma denúncia bombástica contra a tentativa de busca da verdade e dos podres do período da Ditadura. Mais do que isso: sua indignação se volta contra o fato daqueles que sobreviveram aos anos de chumbo se manifestarem e tentarem construir a sua visão sobre o Golpe. E, assim, Villa inicia a sessão de espancamento do argumento histórico – chega a arrepiar. Respiremos fundo:

A lembrança dos 50 anos da queda de João Goulart ocupou amplo espaço na imprensa. Nenhum outro acontecimento da história do Brasil foi tão debatido meio século depois do ocorrido. Para um otimista, isto poderia representar um bom sinal. Afinal, o nosso país tem uma estranha característica de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a reflexão e o debate sobre 1964 e o regime militar acabaram sendo dominados justamente por aqueles que conduziram o país à crise da república populista e que negaram os valores democráticos nos anos 1960-1970.

Sem dúvida. O ideal seria que a reflexão fosse conduzida pela trupe formada por Jair Bolsonaro, Brilhante Ustra, Paulo Maluf, Jarbas Passarinho, Delfim Neto, Paulo Malhães, Olavo de Carvalho, Newton Cerqueira e José Marín.

Dessa trupe, ou melhor, desse verdadeiro dream team dos Anos de Chumbo, não faltariam reflexões isentas, auto-críticas, mea culpas. Uma pena já não podermos contar com as prestimosas colaborações de figuras da estirpe de um Sérgio Fleury, Cecil Borer, Felinto Müller, General Médici, Costa e Silva e Pena Boto. A filosofia da História tinha tudo para ser reinventada.

Uma constelação de Democratas puro-sangue, que não pensavam outra coisa que não elevar ao topo mais alto as instituições e valores republicanos. Eram tão fervorosos na defesa dos chamados “valores democráticos nos anos 1960-1970”, que eles acabaram criando e fomentando verdadeiras máquinas de produção de liberdades e bondades para combater a tortura e terror, um sem número de perseguições, cassações, execuções, ocultação de cadáveres, choques, afogamentos e estupros. Por que isso era coisa de Cuba. No Brasil dos militares não, por favor.

Mais adiante, Villa faz mais revelações bombásticas - é, o moço gosta de bombas (hum...). Jango não era um “presidente reformista”, nunca havia sido um “defensor dos valores democráticos” e muito menos um “administrador capaz”. Sim, isso mesmo. Mas como? Baseado em quê? Utilizando dados estatísticos, pesquisas de opinião da época (como a do Ibope), documentos secretos de Estado, cartas...?

Não.

O douto historiador se baseia numa entrevista dada à Playboy por Celso Furtado e numa declaração de Samuel Wainer, de que Jango lhe pedia para passar a sacolinha junto a empreiteiros:

“uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei.” (“Minha razão de viver”, p. 238).

O que, se for verdadeira a declaração de Wainer, prova que os laços do presidente Jango com a burguesia brasileira não eram pequenos. O que joga por terra a tese do pendor comunista do grande latifundiário e ex-protegido de Vargas.  Mas não, Villa prefere lançar o trecho isolado para plantar a semente da dúvida sobre o caráter de João Goulart. Mas o tiro sai pela culatra. Seriam as próprias empreiteiras uma das mais acintosamente beneficiadas pelo Regime militar. Os seus grandes, megalomaníacos e fracassados (e criminosos) empreendimentos o provam. Então Villa, seria o Regime Militar composto de governantes mais “primitivos” e “pobres de caráter” do que Jango? Ou pior: seriam os militares os verdadeiros comunistas?

Conforme avançamos na leitura do escrito de Villa o sentimento de horror e escândalo só aumenta. Pior: é realmente estarrecedor que esse senhor apresente realmente seus textos sob o rótulo de análise histórica.

Porque é realmente inimaginável que nenhum professor de sua época tenha lhe lembrado que a história se estuda e se reconstitui com o maior número de fontes possíveis, com o cotejamento de versões e visões, as mais distintas e divergentes, eis aí o grande sabor do ofício de Heródoto, Varnhagen e Bloch. Mas Villa parece ter se baseado em outros gigantes, não da História, mas da comédia pastelão. Pois sem a menor cerimônia ou pudor ele simplesmente repete, tal como um papagaio (ou seria tucano?) o mesmo blá-bla-blá dos guardiões da Pátria dos valores sagrados da religião e da família que perpetraram a Revolução Redentora de 64.

Mais adiante o douto guardião da Verdadeira Memória (a da Revolução Redentora) desiste de reinventar a roda da metodologia da ciência histórica (ainda bem!) e de maneira preguiçosa, quase manhosa, deixa-se guiar pela fala dos Revolucionários. Respirem fundo e assistam - se puderem - as linhas abaixo:

Não é possível ignorar o caos instalado no país em março de 1964. A quebra da hierarquia militar incentivada pelo presidente da República é sabidamente conhecida. A gravidade da crise econômica e a inépcia governamental em encontrar um caminho que retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O desinteresse de Jango de buscar uma solução negociada para o impasse não pode ser contestado: é fato. O apego às vazias palavras de ordem como um meio de ocultar a incompetência político-administrativa era conhecido.


Caos, quebra de hierarquia, crise econômica, incompetência, demagogia barata, desprezo ao Congresso: ele está se referindo ao governo tucano do professor sociólogo, Privatizando Henrique Cardoso? Não. É de Jango mesmo. Mas o que há de novo aqui? Nada. Todos que derrubaram o governo democraticamente eleito de João Goulart insistem na mesma empulhação. Mas que isso parta de um militar alquebrado, em estágio avançado de demência, no alto do seu amargor reacionário, vá lá; mas ter que ler isso escrito por alguém que se intitula historiador (mesmo que na verdade seja um estoriador), ah, não! Tenha dó de nós sr. Villa!

Você, sofrido leitor, acha que acabou ou acham que o pior já passou? Na, na ni na não. O triste espetáculo desse artigo mal começou. Essa é a triste verdade.

Nem bem piscamos, e ele prossegue no seu deprimente empreendimento.

JK imaginou que Castello Branco era o marechal Lott e que 1964 era a repetição — um pouco mais agudizada — da crise de 1955. Errou feio. Mas não foi o único. Daí a necessidade de separar 1964 do restante do regime militar. Muitos que foram favoráveis à substituição de Jango logo se afastaram quando ficou patente a violação do acordado com a cúpula militar. Associar o apoio ao que se imaginava como um breve interregno militar com os desmandos do regime que durou duas décadas é pura hipocrisia.

Ah, então você quer me dizer que figuras do quilate e da vivência de um Carlos Lacerda e JK foram - vejam só... - enganados tal como dois bebezinhos, mocinhos inocentes, pudicos interioranos, recém-chegados das fazendolas do papá e do vô, e que mal haviam saído das barras da saia da mãezinha? Ainda chorosos por não poder mais comer os bolos de tia Benta? E, vejam, foram marotamente ludibriados por dúzias de milicos sem nenhuma tarimba política? (Por Deus Villa, assim a minha repulsa por você começa a ser física!)

A questão é que Villa imagina demais. E assim parece perder o contato com a realidade. Assim a gente fica na dúvida sobre quem pode ter inspirado o autor nessas elucubrações tão fantasiosas. Ele acaba não diferenciando o plano da realidade histórica e o plano da imaginação surrealista. Ele diz que ninguém da cúpula havia imaginado uma intervenção de longa duração. A impressão que se tem é que os golpistas eram figuras abiloladas, ingênuas, quase infantis. Que nem sabiam o que estavam fazendo...

Tudo estaria perfeito nesta análise inverídica e deplorável sobre as expectativas que os golpistas tinham do Regime, mas Villa se esquece – talvez de propósito – que havia uma linha dura que sempre defendeu a permanência da ditadura por décadas.

São perguntas básicas, que qualquer criança minimamente alfabetizada conseguiria responder em 15 minutos – e isso sem colar....

Mas Villa talvez precise de 21 anos e, mesmo assim, é bem capaz de pedir ajuda aos militares.

E como eu prometi ao meu estômago, eu passo a me reportar às considerações finais do Brilhante (êpa!) contador de estórias.

É claro que todo esse triste espetáculo de humilhação e selvageria contra o argumento histórico, não poderia se encerrar sem antes investir pesado com toda a sua fúria e ressentimento intelectual contra a memória da luta de resistência armada contra o Regime Militar.

E, logo de cara, o ficcionista destemperado se deixa trair:

Ainda no terreno das falácias, a rememoração da luta armada como instrumento de combate e vitória contra o regime foi patética. Nada mais falso. Nenhum daqueles grupos — alguns com duas dúzias de militantes — defendeu em momento algum o regime democrático.


Mas ora, como um grupelho com “duas dúzias de militantes” pôde se constituir numa ameaça à democracia? E, mais grave, como justificar uma repressão tão brutal e sórdida contra grupelhos tão insignificantes?

Além disso, o autor se serve da surrada bravata – de que os grupelhos “eram adeptos da ditadura militar do proletariado” ou de que nenhum deles defendiam as “liberdades” democráticas, para tentar igualá-los aos carniceiros da Oban, do DOI-Codi e dos Esquadrões da Morte.

Nem discuto o gosto do autor em chafurdar o seu argumento no mesmo lodaçal retórico dos grandes defensores do Regime Militar, mas questiono sim a sua extrema preguiça intelectual – prefiro acreditar nisso, juro que prefiro – em explicitar as concepções que informavam o entendimento da esmagadora maioria desses militantes sobre o que seria uma verdadeira democracia, realmente efetiva, não a de fachada liberal, puramente formal, ritualística, processual, que consagra e perpetua desigualdades, discriminações e exclusões – e movida pelo poder do dinheiro e do jogo de influências. E todos aqueles militantes lutavam não só contra a Ditadura, mas também contra essa “Democracia” de festim sim. E nunca esconderam isso. Esconder ficava e ainda fica por parte dos agentes que torturaram, mataram e praticaram o terror, mas até hoje se negam a revelar seus crimes.

Só mesmo um cérebro baldio ou alguém profundamente ressentido pela luta de quem acreditava em outra democracia (que é o caso do Sr. Villa) para classificar tais militantes da luta armada de “irmãos xipófagos” de ditadores, carniceiros e torturadores do Regime Militar. É como igualar os membros da Resistência Francesa às figuras mais asquerosas das SS hitleristas, os Partizans iugoslavos aos beleguins da Gestappo, e, os heróis do Gueto de Varsóvia aos carrascos que serviam nos campos de concentração nazista. Francamente rapaz.

E ainda diz ele, o torturador da integridade intelectual:

Os extremos tinham o mesmo desprezo pelo voto popular. Quando ouviam falar em democracia, tinham vontade de sacar os revólveres ou acionar os aparelhos de tortura.


Na verdade, quando leio um artigo como o deste professor, a vontade que tenho é de puxar a corda da descarga do meu vaso sanitário. Mas seria poluir de maneira criminosa a praia de minha cidade.






Leonardo Soares dos Santos é professor de História da UFF.



quarta-feira, 16 de abril de 2014






Dentre tantas ofensas perpetradas contra a verdade histórica pela cambada saudosa da Ditadura e de seus crimes contra a humanidade, uma em especial impressiona pela fachada tecnocrática e um certo ar de objetividade – a de afirmar que a Revolução “redentora e gloriosa” fez o que fez (destruindo, massacrando e torturando milhares de pessoas), mas logrou modernizar o Brasil, em especial a sua infraestrutura e o campo (revolução agrícola).  Ela – a Ditadura - matou sim (“- E daí?”), mas melhorou esse país, fez as reformas necessárias, fez ele mais forte, mais pujante. Quanto engodo.



Em outra oportunidade já mostrei o quanto o primeiro aspecto não passa de uma tentativa de distorcer e vilipendiar o argumento histórico, num tipo de ato intelectual que beira a delinquencia. Os chamados grandes empreendimentos da cúpula empresarial-militar não serviram para outra coisa que não a destruição ambiental por onde passou, o extermínio de diversas espécies da flora e da fauna; obras superfaturadas, nas quais a fraude campeava, a corrupção idem e – como se já não bastasse nesse bizarro panteão de atrocidades – até genocídios foram meticulosamente planejados e executados, como o comprova as investigações sobre a construção de rodovias nas regiões Norte e Nordeste, onde segundo cálculos ainda bastante incompletos, cerca de 8 mil índios foram brutalmente chacinados de modo a “limpar” as regiões. Ou seja, tais obras foram magnânimas apenas para quem lucrou com ela (os magnatas dos setores da construção civil, de logística, energia, comunicações etc.) – só que a custo de muito sangue, balas, foiçadas, bombas, roubos, propinas e dor, muita dor.



Mas o segundo aspecto, o da suposta modernização agrícola, ainda resiste no imaginário das carpideiras da Marcha da Família, como se fosse um fato inegável. No fundo ela não é mais do que mais uma empulhação – tão típica da parte dos paladinos desse regime de horror. Basta uma simples e prosaica olhadela em alguns fatos desse hediondo período.



Longe de modernizar, o regime militar se mostrou tão incompetente na condução da questão agrária que praticamente o país regrediu em todos os índices no que tange à agricultura e à política fundiária.



Muito ao contrário da propalada melhoria, as relações de trabalho atingiram um grau de precarização de fazer inveja aos mais odientos regimes feudais ainda existentes. O problema é que na Ditadura o trabalhador rural além de se ver barbaramente aviltado, tanto na exploração de sua mão de obra como nas condições deploráveis em que trabalhava, tinha que sofrer e apanhar calado. Era-lhe proibido o direito de manifestação, de protesto e organização. Só lhe sobrava os sindicatos patronais ou pelegos, que mais pareciam clubinhos de dança e centros sociais que distribuem brinquedos – ou seja, o mesmo que nada.



Se ao tempo de Vargas e de vários governos que o sucederam - e mesmo com muitos problemas e percalços-, um vigoroso movimento camponês ia se constituindo (por meio principalmente dos sindicatos rurais e das Ligas Camponesas), até por isso várias demandas, reivindicações e denúncias chegavam ao conhecimento da opinião pública. O que se dava por meio de jornais, rádios, lideranças sindicais e legislativas (senadores, deputados, vereadores) e dos próprios trabalhadores rurais que se lançavam em inúmeras greves, manifestações em centros urbanos, protestos, ocupações de assembléias e sedes do poder executivo etc.



Nos anos 60, mesmo que com muitos obstáculos e carências, as categorias do campo já haviam conseguido uma lei que liberava e regulamentava a criação de sindicatos rurais. E com todo o seu poder de pressão, que já ressoava pela maior parte do país, eles conseguiram que vários setores da elite e da classe política atentassem sobre a urgência de uma reforma agrária. Esta era efetivamente uma questão da agenda política daquele momento, capaz de trancar a pauta do Congresso. O próprio presidente Jango, não à toa, sentia-se pressionado a fazê-la. Então veio o Golpe de 1964 e tratou de solapar todo esse campo de debates e lutas. Castrou os sindicatos; ceifou lideranças políticas; dizimou as Ligas; perseguiu, torturou e assassinou militantes camponeses – aos montes. O campo ficava aberto a toda sorte de desumanidades por parte dos grandes proprietários e companhias capitalistas. Agora eles podiam explorar o trabalhador até o talo. Com total tranquilidade e irrestrita impunidade.



O Regime também abriu a porteira, como nunca, para um processo gigantesco de grilagem de terras. Foi à seu tempo, quando a desregulação e omissão atingiram níveis criminosos, que figuras do baronato fundiário se apossaram de terras que alcançavam a extensão de alguns países da Europa. E olha que a Cúpula golpista, com poucos meses usufruindo do seu poder, ainda teve a coragem de apresentar um projeto de reforma agrária, que propalava a chamada modernização do campo, mas que nunca seria executado. Pelo menos a modernização que interessava à sociedade. Já os latifundiários se fartaram com a exploração de trabalho escravo e com liberdade para abocanhar a seu bel prazer as terras da Amazônia e do Cerrado. E várias tribos indígenas foram, por tabela, dizimadas. Simples assim.



Se a produção agrícola teve vultoso crescimento (principalmente produtos como café e açúcar), e alguns setores tenham conhecido um notável grau de modernização técnica e mecanização de suas atividades, por outro, não é menos importante que se destaque que é exatamente nesse período que surge no cenário a figura do bóia-fria. Figura mais emblemática da precarização, esbulho e humilhação que assolavam as relações de trabalho nas unidades agrícolas na época do Regime. É significativo que ele também fosse chamado com o singelo nome de “pau-de-arara”.



Ou seja, em alguns setores o avanço tecnológico parecia ser inegável, mas todo ele alimentado por relações praticamente feudais e pré-capitalistas. O sociólogo Octavio Ianni é enfático nesse ponto:



“À medida que se desenvolve, a agroindústria produz e reproduz o bóia-fria, volante ou pau-de-arara. O bóia-fria é a forma mais desenvolvida em que se expressa o caráter das relações de produção na agroindústria canavieira (Origens agrárias do Estado brasileiro, p. 72).”



Cabe ainda lembrar que a incompetência congênita da Ditadura na administração da política fundiária levou o caos ao abastecimento de algumas cidades. O caso da cidade do Rio de Janeiro é emblemático. Até a data do Golpe contra a Democracia em 64, diversos setores da sociedade carioca lutavam por iniciativas e projetos que preservassem o Cinturão Verde da cidade. Este vinha sendo engolido pelo capital imobiliário com intensidade desde a década de 40. Com muito custo aqueles setores buscaram contrarrestar o avanço dos grileiros e negocistas do ramo imobiliário a partir de articulações com lideranças e partidos da esquerda (PCB, PSB e PTB), com a imprensa partidária da época (Imprensa Popular, O Radical, O Popular, Novos Rumos), e – principalmente – com muito protesto, manifestação e pressão junto aos centros de poder da época existentes na cidade (Senado, Câmara Federal e Municipal etc.).



Tudo isso foi jogado no ralo pela truculência e selvageria dos que tomaram o poder em 1964, que simplesmente cassaram, perseguiram e prenderam a maioria daquelas lideranças e militantes partidários. Fecharam suas organizações e entidades. Interditou o dissensso. Calou a crítica. E quem pagou o pato foram os pequenos lavradores do chamado Sertão Carioca (atual zona oeste) e, de quebra, a população urbana e suburbana. Os quais sem um Cinturão Verde que a servisse de alimentos mais em conta, com abundância, acabou ficando refém da comercialização de produtos de outros estados, o que se refletia na qualidade e no preço dos produtos: mais escassos e mais caros.



Por outro lado, a Ditadura não movia uma palha para impedir o amplo processo de retalhamento e grilagem das terras da Zona Oeste, que dizimavam com a agricultura local e só serviam para a especulação imobiliária. Isto é, a agricultura era destruída estupidamente, sem dirimir um pingo que seja o problema habitacional que já se avolumava naqueles anos. E o abastecimento de gêneros no Rio um completo caos.



Com a Ditadura -  e o consequente sequestro das liberdades democráticas, seguido de choque e estrangulamento - todo a farra dos especuladores imobiliários encontrou terreno propício. Não havia quem ou o quê que pudessem questioná-los. Tava tudo dominado!



Uma total vergonha. O Regime que praticamente reconsagrava o trabalho escravo no campo, omitia-se vergonhosamente diante da destruição de cinturões verdes no país.



Como alguém pode sentir saudades de um câncer desses?





Leonardo Soares é professor de História da UFF.


quinta-feira, 10 de abril de 2014




Tentem imaginar a cena.
Num certo país ao norte da América do Sul, um dos governos mais autoritários, totalitários, comunistas e chavistas do mundo (sim, a imprensa na hora de elaborar conceitos só perde para a filósofa Valeska Popozuda) manda enviar tropas federais para conter uma onda de protestos sangrentos, violentos e de contornos fascistas por parte do segmento mais conservador da sociedade, a classe média e a elite econômica – bastante insatisfeitas com a aproximação das classes “mais baixas” na estrutura social como decorrência das políticas sociais implementadas ainda ao tempo de Chávez, e que de fato foram uma das mais bem sucedidas do mundo, mas, claro, vistas como a manifestação de um satânico projeto de implantação do comunismo bolivariano.

Tais segmentos fascistas querem fazer a roda do tempo girar para trás de novo. Ver o populacho regredir, parar de falar de política e de fazê-la acontecer em favor de seus interesses. Que o povinho preto, pobre, favelado e mulambento volte a ser submisso; que volte a ter consciência do seu lugar (bem subalterno) e se comporte como tal.

Para impedir que a vaga fascista de extrema-direita viceje o governo de Maduro fez cumprir as prerrogativas que a Carta Constitucional lhe confere. Botou as tropas nas ruas para conter o terrorismo dessa direita.

Mas mal as tropas pisaram o solo das cidades aterrorizadas pela sanha extremista da “oposição” fascista, o pasquim global do golpismo iniciou uma virulenta ofensiva midiática de contra-informação, proclamando para o quatro ventos que se tratava de mais uma demonstração de autoritarismo de um dos governos mais ditatoriais da história recente da América Latina.  (Seria cômico se não fosse trágico se isso não ocorresse ao mesmo tempo que aqui se comemora os 50 anos do Golpe Militar de 1964 – o qual contou com extremada simpatia e apoio do pasquim global.)

O envio de tropas é mais um claro indício do desprezo que o governo Maduro demonstra pelos “verdadeiros valores democráticos”, a sua recusa em aceitar conviver e respeitar quem lhe faz “oposição”, o seu ódio pela pluralidade de idéias e opiniões – mais uma vez, o cinismo aqui dá o tom, ainda mais vindo de um veículo comprometido com a defesa radical do monopólio das telecomunicações e do uso aberrante da máquina judiciária contra os seus concorrentes e opositores.

Bom, estando certo ou errado, essa é a opinião do pasquim e a forma que ele encontrou para enaltecer os símbolos dessa nossa conhecida de nome Democracia.

Mas muito pior do que estar errado, o pasquim se mostra um incurável órgão golpista esquizofrênico.

A mesma iniciativa que na Venezuela é vista como um golpe contra a cidadania e os valores democráticos, são tidos e havidos na mais nova ocupação militar das favelas do Rio como expressão do mais desbragado comprometimento com a... cidadania e os valores democráticos.

As tropas das forças armadas ocupam novamente algumas das favelas cariocas, com armas em punho, com escopetas apontadas indiscriminadamente para as cabeças dos seus moradores. Mais uma vez se consagra a idéia de que os moradores pretos e favelados devem ser alvos ou de políticas públicas pobres (e de quinta categoria, posto que voltada para cidadãos de segunda classe) ou de repressão armada direta. Pois só assim para esse povinho se colocar no seu lugar. É essa a política que resolve a situação desse tipo de raça.

E escola? Cadê hospital, posto de saúde, coleta de lixo, esgoto, água potável, banco, correios, segurança, teatro, cinema, biblioteca? Cadê a cidadania? Cadê a Justiça? Cadê a Liberdade? Cadê o Estado de Direito? Cadê os direitos? Cadê Amarildo?

Mas vocês só podem estar brincando? – assim indagaria o pasquim da Família (da Zona Sul) Com Deus.

É muito estranho que para um jornal com esse tipo de mentalidade, que algumas  categorias sociais (e raciais), possam ter a audácia de querer algo mais do que um prato de comida e uma cama para descansar o esqueleto.

Política pública e social não é para qualquer um. Política para pobre, a verdadeira, a mais eficaz é aquela que se baseia no poder do fuzil e no peso de tanques e caveirões. E nada mais. Se na pátria de Maduro tal iniciativa é abominada, aqui, ela é prontamente festejada pelo pasquim e seus companheiros de quadrilha midiática.

As ações militares que subjugam e impõem medo aos cidadãos são apresentadas como a reação necessária das forças de segurança contra os “inimigos” da paz, da cidade e dos cidadãos decentes.


Mas se olharmos com mais atenção, vamos perceber que longe de incoerente, o pasquim faz uso de um argumento de uma lógica impecável, de uma coerência cartesiana: a democracia no mundo é perfeita, o que estraga é a droga do pobre! Tanto aqui como na Venezuela.

Assim pensando, a mídia golpista e elitista sedimenta o senso comum que ceifa vidas e famílias. Essa mídia é responsável sim pelos Amarildos e Cláudias de todas as noites. Essa mídia está toda suja do sangue dessa gente. Mata com impunidade, assim lhe permite a falta de democracia dos meios de comunicação desse país.

Leonardo Soares é historiador.


quarta-feira, 9 de abril de 2014





ESCRITO POR LEONARDO SOARES DOS SANTOS   
TERÇA, 08 DE ABRIL DE 2014

Não é incomum ouvirmos da boca raivosa daqueles que ainda têm coragem de defender o regime implantado nesse país a partir de 1964 que, apesar dos “escassos mortos” (mas que fizeram por onde serem aniquilados) e “alguns excessos” ocorridos nos porões da “Revolução” (sic), ele, o regime, além de ter restabelecido a autoridade, o amor aos valores ligados à família e a Deus (!), à democracia (sic) etc., teria se notabilizado pelo seu inegável sucesso em termos econômicos. O qual se manifestaria principalmente em duas áreas: o do crescimento da economia (o Produto Interno Bruto) e as várias obras que fizeram dessa nação um verdadeiro e continental canteiro de obras. Além de pretensioso, o argumento é por demais fajuto.

O crescimento foi enorme sim, mas sem nenhuma consistência, todo ele baseado num irresponsável endividamento público, que de pouco mais de 3 bilhões de dólares ao tempo de Jango saltou para estratosféricos 100 bilhões com Figueiredo. E este ainda tendo que se humilhar para pedir dinheiro emprestado ao FMI, alegando que o país estava simplesmente falido.

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Saiu no CORREIO DA CIDADANIA. Artigo completo aqui

domingo, 6 de abril de 2014





Leonardo Soares dos Santos
Professor de História – UFF de Campos


Venho estudando com afinco o tema do pensamento liberal já algum tempo e tenho me surpreendido com o que tenho conseguido acumular. O legado liberal visto a partir de sua evolução desde o século XVIII é simplesmente assustador. E espero um dia reunir isso num texto de maneira bem sintética, o que não será fácil, diante de tantos exemplos aterradores de aversão ao gênero humano e ao próprio planeta.


O curioso é que uma das análises mais precisas sobre o liberalismo foi feita há quase 10 anos atrás por um autor não muito apreciado pela esquerda ortodoxa. Falo das reflexões de Boaventura de Sousa Santos apresentadas em “Pela mão de Alice” (São Paulo: Cortez, 2006).

É claro que não se trata de uma exposição exaustiva sobre o liberalismo, mas de apenas um aspecto dele – a sua teoria política. E mesmo assim não deixa de impressionar.

O sociólogo português parte do pressuposto de que a modernidade desde sempre teve como pilar o conceito de regulação (contraposto ao improviso e arbitrariedade dos tempos feudais), o qual sempre conviveu de maneira extremamente tensa e desequilibrada com o pilar da emancipação, este, sem dúvida, o mais subversivo e revolucionário.

Segundo Boaventura, a teoria política liberal desde os seus primórdios reproduziu, embora de forma bem sofisticada, o desequilíbrio entre aqueles pilares. E mais: tal teoria consistiu no quase sepultamento da emancipação, quando não na sua criminalização.

Todo o problema se manifesta no nascedouro de tal pensamento. Boaventura nota que desde então seus ideólogos se debatiam com a distinção de duas subjetividades: a subjetividade coletiva do Estado centralizado e a subjetividade atomizada dos cidadãos autônomos e livres. É desse embate teórico que nasce conceitos fundamentais do pensamento ocidental. Tentando compatibilizar as duas subjetividades, os liberais reelaboram os conceitos de Estado e sociedade civil e criam o conceito-ficção de contrato social.

Até aí, nada demais. Mais do que conceitos, eles representam diferentes instâncias, ou, verdadeiros agentes. Cada um representando uma subjetividade.

O nó górdio reside exatamente na descrição de cada um desses agentes e de qual a finalidade sagrada de cada um – incluindo aqui o contrato social. Pois, afinal, para que servem?

O Estado, sendo embora um sujeito monumental, visa tão-só garantir a segurança da vida (Hobbes) e da propriedade (Locke) dos indivíduos na prossecução privada dos seus interesses particulares segundo as regras próprias e naturais da propriedade e do mercado, isto é, da sociedade civil. Sendo os cidadãos livres e autônomos, o poder do Estado só pode assentar no consentimento deles e a obediência que lhe é devida só pode resultar de uma auto-obrigação assumida, isto é, do contrato social (p. 237).

Para além do fato de tal formulação ser basicamente normativa, ela se funda num sem número de idealizações. E, além disso, acaba restringindo a dimensão da emancipação a aspectos referentes ao mercado. O que se encontra consagrado hoje na fórmula: “ - Sou feliz e me realizo na medida em que posso consumir!”. Em outras palavras: a subjetividade do cidadão só pode ser satisfeita pelo e no mercado. Mas a captura do mercado não é só da subjetividade, mas como veremos, da própria cidadania.

 Nas diferentes fases do capitalismo, o pensamento liberal sempre tendeu a valorizar mais o mercado. Na atual fase do capitalismo, ele tomaria até o papel do Estado no plano da regulação econômica. Certo? Pela metade. Pois a regulação do mercado (preços, salários, taxas de câmbio, de juros etc.) atingiria até o plano político. O português chama a esse fenômeno de “desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade”.


Não é por outro motivo que os ditos liberais sintam verdadeiro pavor diante de expressões como “democracia popular”, “manifestações públicas” e “pressão da sociedade”.

Curiosamente, um evento por demais despretensioso veio ilustrar a mentalidade autoritária e barbaramente anti-democrática dos liberais do mundo empresarial. Na noite da 26ª Edição do Prêmio Shell (evento de premiação do ramo teatral), uma das contempladas, a atriz Fernanda Azevedo, fez questão de ler um pequeno trecho de um escrito de Eduardo Galeano com denúncias á empresa promotora:


No início de 1995, o gerente geral da Shell na Nigéria explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar nesse país: “Para uma empresa comercial, que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso"

De fato, como antes frisado, as empresas têm muito mais facilidade de implementar seus empreendimentos (principalmente os “mega”) em ambientes de pouca ou nenhuma liberdade política. Quanto a isso não há nenhuma surpresa.  O erro se manifesta quando alguém munido de bastante senso comum e desinformação declara ser isso uma incoerência: o apoio do ditaduras por liberais. Incoerência? Nada mais falso.

Desde sempre os liberais adotaram uma visão bastante restritiva e excludente no tocante a participação dos indivíduos junto ao Estado e a vida pública como um todo. Ao contrário do que diz respeito ao Mercado – onde todos estariam aptos a participar (embora defendesse isso muito cinicamente, pois só assim para imaginar que a participação numa empresa se desse por um ato de vontade). E é neste ponto que os liberais agiram firmemente para solapar, tanto ao nível teórico como político, o princípio da comunidade (que, pelo contrário, foi ardorosamente defendido por Rousseau, não à toa, um dos emblemas da Revolução Francesa).

Não custa lembrar que os liberais nunca foram adeptos do sufrágio universal, pois se no mundo do mercado nunca advogassem explicitamente critérios de diferenciação e hierarquização; no do Estado e da política, perspectiva bem diferente seria adotada – nem todos poderiam ou teriam capacidade de participar politicamente das atividades do Estado. Fruto de tal postura é a instituição do voto censitário. Só vota e pode ser votado quem tem uma certa renda ou patrimônio, amealhado junto e pelo mercado. Aqui o Estado é escandalosamente colonizado pelos princípios do mercado. Tiranizado, poderíamos também afirmar.

Mas a gigantesca pressão dos movimentos operários no século XIX empurrou literalmente o seu desejo pelo voto goela abaixo. O sufrágio universal foi conseguido com base em muito suor e sangue. Sabendo ser inútil lutar contra isso, os liberais do XIX passaram a resgatar um dos princípios semeados pela teoria política liberal em fins do XVIII. Se não era possível proibir a participação popular no governo do Estado, investiram com tudo na tentativa de restringir ao máximo tal participação. Daí a difusão da idéia de que o “princípio da cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício reside exclusivamente no voto.” (p. 238)

Conseqüentemente, os liberais devotarão uma enorme paixão pelos princípios da democracia representativa. Mas na lógica liberal a representação é alicerçada “na distância, na diferenciação e mesmo na opacidade entre representante e representado”.


Kant, no Projeto de Paz Perpétua, de 1795, definiu melhor que ninguém o caráter paradoxal da representação democrática ao afirmar que a representatividade dos representantes é tanto maior quanto menor for o seu número e quanto maior for o número dos representados.(id.)

Toda ação diferente e além dos limites do voto é abertamente desencorajada, não raro criminalizada. O que torna possível que os liberais adotem como verdadeiro chavão a frase: “A única arma política do cidadão é o voto!”. Nada é aceitável além dos marcos da democracia representativa. Se pudessem, os adeptos de tal “democracia” (simulacros de ditaduras stalinistas) seriam devidamente encarcerados junto aos criminosos mais perigosos – eis o sonho de consumo de muitos liberais, alojados em Institutos de reacionarismo milenar.

Tal afirmação, aparentemente inocente, implica na total marginalização do princípio da comunidade defendido por Rousseau – não é por acaso que esse passa a ser associado exclusivamente aos jacobinos e ao chamado “período do terror” da Revolução Francesa. Tem-se assim a imagem do apóstolo do terrorismo, precursor da Al Qaeda.

Na verdade, o contrato social defendido por Rousseau é muito diferente daquele dos liberais. Para o francês
A vontade geral tem de ser construída com a participação efetiva dos cidadãos, de modo autônomo e solidário, sem delegações que retirem transparência à relação entre “soberania” e “governo”. (p. 239)

Em nenhum momento passa pela cabeça de Rousseau tolher a dimensão da comunidade por meio de uma subordinação ao Estado, e muito menos ao mercado.


Por esta razão, o contrato social assenta, não numa obrigação política vertical cidadão-Estado, como sucede no modelo liberal, mas antes numa obrigação política horizontal cidadão-cidadão na base da qual é possível fundar uma associação política participativa. E, para isso, a igualdade formal entre os cidadãos não chega... (id.)





 Portanto, é num esquema mental frontalmente oposto ao do pensador francês, forjado há mais de três séculos, que se assenta a aversão mostrada por diversos segmentos da classe política, da sociedade civil e agentes do mercado pelas manifestações políticas que tomaram as ruas do país desde meados de 2013.

É nesse esquema mental, forjado pela ideologia liberal, que repousa uma profunda ojeriza por manifestações de protesto e ações coletivas de contestação que ousem ocupar o espaço público. 

E que são pensados por aqueles agentes apenas como vias a servirem para o trânsito (supostamente rápido e eficiente) de mão-de-obra e mercadorias. Até porque a própria visão do espaço público é formatada pelo que seriam os ditames do mercado. É de tal esquema que brota quase que instintivamente da boca de administradores que assim que se deparam com um movimento grevista o classifiquem como ato de “banditismo”, “bagunça de agitador” e ações de “meliantes” – conforme ficou fartamente evidenciado na greve dos garis no último carnaval carioca. Vitoriosa, a despeito da truculência do prefeito e dos ataques da imprensa corporativa.

Ora, como esquecer a reação da imprensa aos próprios protestos que varreram o Brasil, tidos como atos de “vândalos”, “baderneiros”, “terroristas”, “infiltrados”, “elementos ligados a partidos políticos(!)” e que tais?

Em suma: o pensamento liberal não tem o menor apreço pelos valores e instituições democráticas. A não ser que essas facilitem ou se subordinem, sem qualquer contestação, aos ditames e “necessidades” dos setores ligados ao mercado.

Pois do contrário são devidamente esmagadas, como cana na moenda. Como assim ficou claro nas intervenções dos EUA no Afeganistão e Iraque, quando da pilhagem de países europeus na África e vários outros recantos do planeta, alvos de agressivo investimento dos setores do capitalismo global. Nada casual o fato de que muitos desses empreendimentos tenham sido viabilizados após ilegais incursões militares.

Na verdade, os liberais prezam um modelo de vida política dominado pela apatia, pelo distanciamento da administração do Estado. Quanto mais longe o cidadão do governo da coisa pública e quanto mais ele delegar seus direitos a um representante, melhor para o funcionamento de uma democracia toda ela formatada pelos princípios castradores de um cidadão cuja dimensão ativa só é bem vista se ela for canalizada para o mercado.

Melhor que isso, como bem afirmou um insigne representante dessa corrente, só uma ditadura.
Por sinal, nada mais coerente o apoio de vários intelectuais, entidades e empresas adeptas do liberalismo às brutais, covardes e sanguinárias ditaduras que assolaram a América Latina entre 1964 e 1990. Não há como esquecer que o primeiro governo a implantar medidas neoliberais tenha sido exatamente o do General Augusto Pinochet, com a assessoria de Milton Friedman, economista e arauto do neoliberalismo.