domingo, 6 de abril de 2014





Leonardo Soares dos Santos
Professor de História – UFF de Campos


Venho estudando com afinco o tema do pensamento liberal já algum tempo e tenho me surpreendido com o que tenho conseguido acumular. O legado liberal visto a partir de sua evolução desde o século XVIII é simplesmente assustador. E espero um dia reunir isso num texto de maneira bem sintética, o que não será fácil, diante de tantos exemplos aterradores de aversão ao gênero humano e ao próprio planeta.


O curioso é que uma das análises mais precisas sobre o liberalismo foi feita há quase 10 anos atrás por um autor não muito apreciado pela esquerda ortodoxa. Falo das reflexões de Boaventura de Sousa Santos apresentadas em “Pela mão de Alice” (São Paulo: Cortez, 2006).

É claro que não se trata de uma exposição exaustiva sobre o liberalismo, mas de apenas um aspecto dele – a sua teoria política. E mesmo assim não deixa de impressionar.

O sociólogo português parte do pressuposto de que a modernidade desde sempre teve como pilar o conceito de regulação (contraposto ao improviso e arbitrariedade dos tempos feudais), o qual sempre conviveu de maneira extremamente tensa e desequilibrada com o pilar da emancipação, este, sem dúvida, o mais subversivo e revolucionário.

Segundo Boaventura, a teoria política liberal desde os seus primórdios reproduziu, embora de forma bem sofisticada, o desequilíbrio entre aqueles pilares. E mais: tal teoria consistiu no quase sepultamento da emancipação, quando não na sua criminalização.

Todo o problema se manifesta no nascedouro de tal pensamento. Boaventura nota que desde então seus ideólogos se debatiam com a distinção de duas subjetividades: a subjetividade coletiva do Estado centralizado e a subjetividade atomizada dos cidadãos autônomos e livres. É desse embate teórico que nasce conceitos fundamentais do pensamento ocidental. Tentando compatibilizar as duas subjetividades, os liberais reelaboram os conceitos de Estado e sociedade civil e criam o conceito-ficção de contrato social.

Até aí, nada demais. Mais do que conceitos, eles representam diferentes instâncias, ou, verdadeiros agentes. Cada um representando uma subjetividade.

O nó górdio reside exatamente na descrição de cada um desses agentes e de qual a finalidade sagrada de cada um – incluindo aqui o contrato social. Pois, afinal, para que servem?

O Estado, sendo embora um sujeito monumental, visa tão-só garantir a segurança da vida (Hobbes) e da propriedade (Locke) dos indivíduos na prossecução privada dos seus interesses particulares segundo as regras próprias e naturais da propriedade e do mercado, isto é, da sociedade civil. Sendo os cidadãos livres e autônomos, o poder do Estado só pode assentar no consentimento deles e a obediência que lhe é devida só pode resultar de uma auto-obrigação assumida, isto é, do contrato social (p. 237).

Para além do fato de tal formulação ser basicamente normativa, ela se funda num sem número de idealizações. E, além disso, acaba restringindo a dimensão da emancipação a aspectos referentes ao mercado. O que se encontra consagrado hoje na fórmula: “ - Sou feliz e me realizo na medida em que posso consumir!”. Em outras palavras: a subjetividade do cidadão só pode ser satisfeita pelo e no mercado. Mas a captura do mercado não é só da subjetividade, mas como veremos, da própria cidadania.

 Nas diferentes fases do capitalismo, o pensamento liberal sempre tendeu a valorizar mais o mercado. Na atual fase do capitalismo, ele tomaria até o papel do Estado no plano da regulação econômica. Certo? Pela metade. Pois a regulação do mercado (preços, salários, taxas de câmbio, de juros etc.) atingiria até o plano político. O português chama a esse fenômeno de “desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade”.


Não é por outro motivo que os ditos liberais sintam verdadeiro pavor diante de expressões como “democracia popular”, “manifestações públicas” e “pressão da sociedade”.

Curiosamente, um evento por demais despretensioso veio ilustrar a mentalidade autoritária e barbaramente anti-democrática dos liberais do mundo empresarial. Na noite da 26ª Edição do Prêmio Shell (evento de premiação do ramo teatral), uma das contempladas, a atriz Fernanda Azevedo, fez questão de ler um pequeno trecho de um escrito de Eduardo Galeano com denúncias á empresa promotora:


No início de 1995, o gerente geral da Shell na Nigéria explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar nesse país: “Para uma empresa comercial, que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso"

De fato, como antes frisado, as empresas têm muito mais facilidade de implementar seus empreendimentos (principalmente os “mega”) em ambientes de pouca ou nenhuma liberdade política. Quanto a isso não há nenhuma surpresa.  O erro se manifesta quando alguém munido de bastante senso comum e desinformação declara ser isso uma incoerência: o apoio do ditaduras por liberais. Incoerência? Nada mais falso.

Desde sempre os liberais adotaram uma visão bastante restritiva e excludente no tocante a participação dos indivíduos junto ao Estado e a vida pública como um todo. Ao contrário do que diz respeito ao Mercado – onde todos estariam aptos a participar (embora defendesse isso muito cinicamente, pois só assim para imaginar que a participação numa empresa se desse por um ato de vontade). E é neste ponto que os liberais agiram firmemente para solapar, tanto ao nível teórico como político, o princípio da comunidade (que, pelo contrário, foi ardorosamente defendido por Rousseau, não à toa, um dos emblemas da Revolução Francesa).

Não custa lembrar que os liberais nunca foram adeptos do sufrágio universal, pois se no mundo do mercado nunca advogassem explicitamente critérios de diferenciação e hierarquização; no do Estado e da política, perspectiva bem diferente seria adotada – nem todos poderiam ou teriam capacidade de participar politicamente das atividades do Estado. Fruto de tal postura é a instituição do voto censitário. Só vota e pode ser votado quem tem uma certa renda ou patrimônio, amealhado junto e pelo mercado. Aqui o Estado é escandalosamente colonizado pelos princípios do mercado. Tiranizado, poderíamos também afirmar.

Mas a gigantesca pressão dos movimentos operários no século XIX empurrou literalmente o seu desejo pelo voto goela abaixo. O sufrágio universal foi conseguido com base em muito suor e sangue. Sabendo ser inútil lutar contra isso, os liberais do XIX passaram a resgatar um dos princípios semeados pela teoria política liberal em fins do XVIII. Se não era possível proibir a participação popular no governo do Estado, investiram com tudo na tentativa de restringir ao máximo tal participação. Daí a difusão da idéia de que o “princípio da cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício reside exclusivamente no voto.” (p. 238)

Conseqüentemente, os liberais devotarão uma enorme paixão pelos princípios da democracia representativa. Mas na lógica liberal a representação é alicerçada “na distância, na diferenciação e mesmo na opacidade entre representante e representado”.


Kant, no Projeto de Paz Perpétua, de 1795, definiu melhor que ninguém o caráter paradoxal da representação democrática ao afirmar que a representatividade dos representantes é tanto maior quanto menor for o seu número e quanto maior for o número dos representados.(id.)

Toda ação diferente e além dos limites do voto é abertamente desencorajada, não raro criminalizada. O que torna possível que os liberais adotem como verdadeiro chavão a frase: “A única arma política do cidadão é o voto!”. Nada é aceitável além dos marcos da democracia representativa. Se pudessem, os adeptos de tal “democracia” (simulacros de ditaduras stalinistas) seriam devidamente encarcerados junto aos criminosos mais perigosos – eis o sonho de consumo de muitos liberais, alojados em Institutos de reacionarismo milenar.

Tal afirmação, aparentemente inocente, implica na total marginalização do princípio da comunidade defendido por Rousseau – não é por acaso que esse passa a ser associado exclusivamente aos jacobinos e ao chamado “período do terror” da Revolução Francesa. Tem-se assim a imagem do apóstolo do terrorismo, precursor da Al Qaeda.

Na verdade, o contrato social defendido por Rousseau é muito diferente daquele dos liberais. Para o francês
A vontade geral tem de ser construída com a participação efetiva dos cidadãos, de modo autônomo e solidário, sem delegações que retirem transparência à relação entre “soberania” e “governo”. (p. 239)

Em nenhum momento passa pela cabeça de Rousseau tolher a dimensão da comunidade por meio de uma subordinação ao Estado, e muito menos ao mercado.


Por esta razão, o contrato social assenta, não numa obrigação política vertical cidadão-Estado, como sucede no modelo liberal, mas antes numa obrigação política horizontal cidadão-cidadão na base da qual é possível fundar uma associação política participativa. E, para isso, a igualdade formal entre os cidadãos não chega... (id.)





 Portanto, é num esquema mental frontalmente oposto ao do pensador francês, forjado há mais de três séculos, que se assenta a aversão mostrada por diversos segmentos da classe política, da sociedade civil e agentes do mercado pelas manifestações políticas que tomaram as ruas do país desde meados de 2013.

É nesse esquema mental, forjado pela ideologia liberal, que repousa uma profunda ojeriza por manifestações de protesto e ações coletivas de contestação que ousem ocupar o espaço público. 

E que são pensados por aqueles agentes apenas como vias a servirem para o trânsito (supostamente rápido e eficiente) de mão-de-obra e mercadorias. Até porque a própria visão do espaço público é formatada pelo que seriam os ditames do mercado. É de tal esquema que brota quase que instintivamente da boca de administradores que assim que se deparam com um movimento grevista o classifiquem como ato de “banditismo”, “bagunça de agitador” e ações de “meliantes” – conforme ficou fartamente evidenciado na greve dos garis no último carnaval carioca. Vitoriosa, a despeito da truculência do prefeito e dos ataques da imprensa corporativa.

Ora, como esquecer a reação da imprensa aos próprios protestos que varreram o Brasil, tidos como atos de “vândalos”, “baderneiros”, “terroristas”, “infiltrados”, “elementos ligados a partidos políticos(!)” e que tais?

Em suma: o pensamento liberal não tem o menor apreço pelos valores e instituições democráticas. A não ser que essas facilitem ou se subordinem, sem qualquer contestação, aos ditames e “necessidades” dos setores ligados ao mercado.

Pois do contrário são devidamente esmagadas, como cana na moenda. Como assim ficou claro nas intervenções dos EUA no Afeganistão e Iraque, quando da pilhagem de países europeus na África e vários outros recantos do planeta, alvos de agressivo investimento dos setores do capitalismo global. Nada casual o fato de que muitos desses empreendimentos tenham sido viabilizados após ilegais incursões militares.

Na verdade, os liberais prezam um modelo de vida política dominado pela apatia, pelo distanciamento da administração do Estado. Quanto mais longe o cidadão do governo da coisa pública e quanto mais ele delegar seus direitos a um representante, melhor para o funcionamento de uma democracia toda ela formatada pelos princípios castradores de um cidadão cuja dimensão ativa só é bem vista se ela for canalizada para o mercado.

Melhor que isso, como bem afirmou um insigne representante dessa corrente, só uma ditadura.
Por sinal, nada mais coerente o apoio de vários intelectuais, entidades e empresas adeptas do liberalismo às brutais, covardes e sanguinárias ditaduras que assolaram a América Latina entre 1964 e 1990. Não há como esquecer que o primeiro governo a implantar medidas neoliberais tenha sido exatamente o do General Augusto Pinochet, com a assessoria de Milton Friedman, economista e arauto do neoliberalismo.




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