domingo, 27 de abril de 2014



É deveras impressionante a forma como Marco Antonio Villa tenta reconstruir a memória do Golpe de 1964. Não satisfeito em desprezar os fatos concretos - tanto os de conhecimento público a décadas como os que têm sido revelados a pouco menos tempo - o contador de estórias (de qualidade duvidosa) agora tenta esbofetear qualquer rigor científico que a ciência histórica possa ter.

No seu afã de provar que o Golpe Militar de 64 foi democrático, patriótico, cristão e revolucionário, o memorialista da Revolução Redentora tenta atacar a figura pessoal de João Goulart. Ele - o estoriador - vem recorrentemente nas suas várias e lamentáveis manifestações investindo na tese de que Jango era o verdadeiro golpista (ele teria mandado cercar o Congresso), era corrupto (recebia dinheiro de empreiteira) e que era um sujeito desprovido de caráter.

Tudo isso justificaria a eclosão de um Golpe brutal (que Villa afirma não ter sido tão brutal assim) em 64 (que segundo o contador de lorota, só começou em 68) e que duraria até 85 (até 79, corrige imediatamente o memorialista imparcial).

Em que tipo de mente, o caráter e os defeitos de um governante podem legitimar e justificar o sequestro do Estado de Direito num país? Em qualquer país decente que se imagine, tal postura intelectual, enormemente deprimente e desqualificada, seria devidamente rechaçada. Mas aqui neste país não: ela ganha ares de teoria de capa da Science.


A última estripulia de Villa é o mantra de que Jango, além de toda a incompetência, era um sujeito sem nenhuma estatura moral. E para tanto Villa se fundamenta em declarações de Celso Furtado, dadas em abril de 1999 (terá sido no dia 1°?), no qual teria afirmado que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”. 

O curioso é constatarmos a fonte de tal achado de Villa. A entrevista de Furtado, a chave de sua revolução interpretativa sobre o Golpe - e que prova que foi na verdade uma Revolução - se baseia numa entrevista dada a Revista masculina de nome Playboy. Isso mesmo meus caros, para provar a sua horripilante interpretação Villa apela para uma revista pornográfica. E com ela sempre debaixo do braço o Villa se volta com enorme truculência intelectual para contestar qualquer afirmação de que o Golpe de 64 instaurou um período de trevas para a democracia representativa. O desespero do historiador em positivar a "Revolução" de 64 é tanta, que ele não pensa duas vezes em unir História e Saliência.





A grande fonte das descobertas de Marco Villa. A profunda Playboy de abril de 99.



Não se quer aqui de maneira alguma desacreditar o depoimento de Celso, mas o que mais irrita na imparcialidade de Villa é o fato dele ignorar outros aspectos de sua entrevista. Villa só extrai aquilo que supostamente confirme a sua crença de que o Golpe tenha sido verdadeiramente revolucionário e redentor (ou um contra-golpe). Ele passa por cima de diversas outras denúncias de Celso. Fixando-se apenas naquele trecho, isolando-o de todo um contexto, parece até que Celso tenha tido a mesma concepção (torpe e nefasta) de Villa: de que o Golpe nos livrou de um presidente nefasto e torpe.

Não, não foi bem assim sr. Villa! E o senhor sabe disso. Basta ler direito e de maneira minimamente honesta as palavras de Celso.

Ora, o que terá impedido Villa de prestar atenção nas outras partes da entrevista? É bem provável que uma revista como a Playboy leve a isso. Estou apenas supondo - que fique claro! - que ele tenha de distraído com outra seções da revista masculina. O que é perfeitamente natural. É como se Villa se trancasse num banheiro com a revistinha e não quisesse ouvir mais ninguém.

Caros, vejamos, não é uma tarefa fácil manter a concentração, mesmo que numa análise séria, rigorosa, criteriosa e desapaixonada da entrevista de Celso Furtado na Playboy de abril de 1999. Pois mal abrimos e isso assim se nos abre:


O conteúdo da entrevista de Celso Furtado parece fascinar a todos.


A despeito de tantas distrações - bobas, é claro, nada que afete a missão de um historiador comprometido com a verdade e com o rigor do ofício do Bloch - é indisfarçável o gozo do historiador em destruir com a imagem democrática de Jango. E usa Celso como principal arma.

Mas se Villa fosse mais cuidadoso ele poderia se basear em outros depoimentos do mesmo personagem. Vejamos o que ele diz numa entrevista dada ao Estado de São Paulo (31/03/2004), mais ou menos na mesma época. Uma visão mais equilibrada se nos apresenta.
 

Perguntado sobre os responsáveis pelo Golpe, Celso segue imputando grande responsabilidade a Jango, mas......


Tenho a impressão que a responsabilidade do golpe cabe tanto ao Jango quanto ao Lacerda. A minha impressão é que o problema da sucessão do Jango seria muito difícil e complicado, no caso de vitória do Lacerda. João Goulart teria que enfrentar um guerreiro nato que só crescia e se agigantava brigando.



Sobre a tal ameaça do fantasma do Comunismo (que o historiador segue dando tanto crédito) Celso é taxativo:


 No Brasil, os militares acreditaram no espantalho e acabaram sendo enganados, como também foram enganados os que acreditaram que os militares só permaneceriam dois anos no poder, antes de devolvê-lo aos civis. Esse foi o caso do grupo mineiro, do Magalhães Pinto e outros, todos a espera da tradicional acomodação que acabou não acontecendo.



Mas disso Villa não quer saber. Ele só quer saber de se ocupar da Playboy - isto é, da entrevista de Celso na mesma. Pronunciamentos ponderados como esse de Celso, analisando vários ângulos e possibilidades de uma mesma questão, cogitando diferentes hipóteses, ou seja, tentando perceber a complexidade de um processo histórico, não, isso não interessa a Villa. O que interessa é mostrar a fraqueza do Jango.

Ou seria uma questão de distração? Mas o que teria distraído tanto ao Villa?




Débora Stroligo também se mostra surpresa com as revelações de Furtado.




E, cá pra nós, passados tantos anos, e de tanto Villa ocupar uma mão com a Playboy de abril de 99 e, com a outra mão, com seus cinco dedos, escrever tanto texto gozado contra Jango, alguém aí teria coragem de pedir essa revista emprestada a ele?



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