terça-feira, 6 de maio de 2014





Os acontecimentos recentes da Venezuela e o movimento grevista dos garis da cidade do Rio de Janeiro no início de março de 2014, em pleno carnaval, e a forma como a grande imprensa brasileira moldou a cobertura sobre tais eventos nos fazem perceber o quanto o tema analisado pelos pesquisadores argentinos María Verónica Secreto e Norberto Ferrero se mantém vivo - em mentes, corações e vocabulário de muitos escribas nas redações refrigeradas desse país afora.


Em Os Pobres e a Política os autores passeiam por diversos temas da história latino-americana, com especial ênfase nos países da América do Sul, procurando demonstrar como foi sendo gestado ao longo de séculos uma tensa e desigual estrutura de relações entre as elites políticas e as classes populares (os pobres). O estudo resumido de eventos como as guerras de independência, os movimentos rurais (desde pelo menos o século XIX), o trabalho escravo (e forçado) e os movimentos sociais evidenciam como tal desigualdade se manifesta no simples fato de que historicamente “o populacho”, a “massa ignara”, a “ralé sórdida”, em suma, o “povo” é visto como incapaz de agir politicamente, de pensar a sua situação em termos políticos, de vivê-la e construir significados e possibilidades a partir dela.


Os eflúvios do pensamento racial da segunda metade do século XIX se fazem sentir: mas se naquele o legado racial impedia o negro, o índio e o mestiço de vislumbrar qualquer aspecto da vida que não se resumisse a sua miserável e sórdida busca pela sobrevivência – tal qual um ser bastante primitivo, sem cultura, bárbaro etc. – hoje uma sutil adequação foi feita a tal raciocínio, até porque a fragorosa derrota do nazismo foi a pá de cal no discurso racial. Mas a necessidade de estigmatizar certos segmentos se manteve firme. O nazismo sim foi derrotado, já o sistema capitalista de dominação de classe não. Daí a perenidade do ato de desqualificação do(s) pobre(s). Incapaz, inepto, inconsciente, despolitizado e místico não por fatores genéticos. Mas por questões culturais (clientelismo passado de geração em geração), pelo fatalismo estrutural legado por sua condição de classe (o sistema de exploração o massacra a ponto de lhe embotar qualquer possibilidade de superação de sua miserável existência pela via da política) e razões históricas (a sociedade civil na América Latina sempre foi gelatinosa).


Os autores começam a desmontar tal perspectiva exatamente pelo trabalho de investigação de caráter histórico. Em “A plebe nas guerras das independências”, o primeiro capítulo do livro, os autores demonstram que as camadas populares foram sim parte importantíssima desse processo, atuando como protagonista, influenciando no resultado final das lutas e apresentando demandas e reivindicações distintas da elite. Espaço especial é dedicado à luta dos negros escravizados do Haiti, movimento único na história, mas que por fatores ideológicos e políticos (inclusive raciais) foi apagado da historiografia tradicional.

Em “A terra nos movimentos sociais” eles enfatizam a importância da luta de segmentos indígenas na luta pelo direito à terra na antiga América espanhola; luta cujas marcas se fazem visíveis até hoje, nos embates contra as multinacionais e empresas do agronegócio em pleno terceiro milênio. Aliás, a investigação histórica nos permite ver que idéias e conceitos como cidadania, igualdade e estado moderno quando transpostos ao plano concreto da realidade se mostra prenhe de contradições e incoerências, motivando por si só a eclosão de uma série de conflitos entre diversos agentes sociais.


No terceiro capítulo, os autores reconstituem com grande competência e clareza todo o debate em torno do trabalho escravo desde o século XIX, no mundo – desde as ações da Anti-slavery International em 1839 - e no Brasil. Os autores demonstram que foi aqui que o conceito de trabalho escravo ganhou maior repercussão, para o que muito contribuiu a larga experiência da escravidão. Já no mundo como um todo prefere-se adotar a expressão trabalho forçado, “o que remete a uma especificidade do mercado de trabalho contemporâneo”. Os autores chegam a tal conclusão após analisar o amplo debate realizado por grupos, entidades e governos de diversos países por mais de um século, desde o Slavery Abolition Act de 1833, passando por acordos e tratados sancionados pela Sociedade das Nações e pela Organização das Nações Unidas (ONU), até a elaboração da Convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).


O ponto principal desse capítulo é a problematização e crítica que os autores fazem do termo trabalho escravo tal como pensado no Brasil. Além de guardar certo vício paternalista – ao encarar o trabalhador como incapaz e uma vítima congênita, o termo traz em si uma certa absolvição do caráter exploratório do próprio sistema capitalista, colocando a culpa nos ombros de uma suposta falta de caráter de patrões “desumanos”, por isso, na avaliação dos autores: “a utilização de outra terminologia como servidão por dívidas permite colocar a culpa no culpado e não na vítima, porque implica o reconhecimento do capitalista como um explorador em potencial no momento em que as condições de produção o demandem, e não simplesmente como uma perversão particular ou um retorno às formas e práticas sociais do século XIX”.  

No quarto e último capítulo, os autores destacam a questão dos movimentos sociais, analisando as suas relações com o Estado, a construção de identidades, a organização e a construção da forma de ação social de nome protesto, a atuação dos pobres etc. Mais uma vez os autores utilizam temas gerais como pano de fundo para a (re)problematização de conceitos consagrados e – diríamos - ossificados em certo imaginário acadêmico. Um dos mais notórios é certamente o do clientelismo. E aqui os autores mais uma vez evidenciam como as elites políticas e sociais, e, vasta parcela dos intelectuais acadêmicos (seja de “esquerda” ou de “direita”) operaram com esse conceito em diversas análises sobre a relação entre Estado e Sociedade Civil (em especial no chamado contexto de vigência do Populismo), com o estrito objetivo de desqualificar, minimizar e despolitizar as ações de protesto e de intervenção na política por parte das camadas populares, ou, da “gente pobre” das favelas, periferias, subúrbios, morros, villas e barrios.


Como bem alertam os autores no tocante a participação desses pobres neste e noutros capítulos de nossa história, mais frutífero do que o apego a conceitos claramente pejorativos e estigmatizadores, é preciso ir fundo nesta história, percebendo concretamente o que está em jogo, que “variáveis ingressam na política dos pobres e mostram que eles fazem política, embora não da forma como os partidos e os políticos tradicionais gostariam ou prescrevem”, até por que eles “fazem política da forma como eles entendem que deve ser feita”.

Uma pena que a classe jornalística leia tão pouco. Com esse simples livrinho muita atrocidade deixaria de ser escrita. Melhor para o Justo Veríssimo (o do " - Quero que o pobre se exploda!"), que de sua catacumba vê tranquilo e satisfeito a reprodução do seu legado nos jornais da grande imprensa. O que diz muito do espírito liberal-autoritário até hoje reinante em nossas elites "letradas"....




Leonardo Soares dos Santos é historiaDOR.

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