Os
acontecimentos recentes da Venezuela e o movimento grevista dos garis da cidade
do Rio de Janeiro no início de março de 2014, em pleno carnaval, e a forma como
a grande imprensa brasileira moldou a cobertura sobre tais eventos nos fazem
perceber o quanto o tema analisado pelos pesquisadores argentinos María Verónica
Secreto e Norberto Ferrero se mantém vivo - em mentes, corações e vocabulário
de muitos escribas nas redações refrigeradas desse país afora.
Em
Os Pobres e a Política os autores
passeiam por diversos temas da história latino-americana, com especial ênfase
nos países da América do Sul, procurando demonstrar como foi sendo gestado ao
longo de séculos uma tensa e desigual estrutura de relações entre as elites
políticas e as classes populares (os pobres).
O estudo resumido de eventos como as guerras de independência, os movimentos
rurais (desde pelo menos o século XIX), o trabalho escravo (e forçado) e os
movimentos sociais evidenciam como tal desigualdade se manifesta no simples
fato de que historicamente “o populacho”, a “massa ignara”, a “ralé sórdida”,
em suma, o “povo” é visto como incapaz de agir politicamente, de pensar a sua
situação em termos políticos, de vivê-la e construir significados e
possibilidades a partir dela.
Os
eflúvios do pensamento racial da segunda metade do século XIX se fazem sentir:
mas se naquele o legado racial impedia o negro, o índio e o mestiço de
vislumbrar qualquer aspecto da vida que não se resumisse a sua miserável e
sórdida busca pela sobrevivência – tal qual um ser bastante primitivo, sem
cultura, bárbaro etc. – hoje uma sutil adequação foi feita a tal raciocínio,
até porque a fragorosa derrota do nazismo foi a pá de cal no discurso racial.
Mas a necessidade de estigmatizar certos segmentos se manteve firme. O nazismo
sim foi derrotado, já o sistema capitalista de dominação de classe não. Daí a
perenidade do ato de desqualificação do(s) pobre(s). Incapaz, inepto,
inconsciente, despolitizado e místico não por fatores genéticos. Mas por
questões culturais (clientelismo passado de geração em geração), pelo fatalismo
estrutural legado por sua condição de classe (o sistema de exploração o
massacra a ponto de lhe embotar qualquer possibilidade de superação de sua
miserável existência pela via da política) e razões históricas (a sociedade
civil na América Latina sempre foi gelatinosa).
Os
autores começam a desmontar tal perspectiva exatamente pelo trabalho de
investigação de caráter histórico. Em “A plebe nas guerras das independências”,
o primeiro capítulo do livro, os autores demonstram que as camadas populares
foram sim parte importantíssima desse processo, atuando como protagonista,
influenciando no resultado final das lutas e apresentando demandas e
reivindicações distintas da elite. Espaço especial é dedicado à luta dos negros
escravizados do Haiti, movimento único na história, mas que por fatores
ideológicos e políticos (inclusive raciais) foi apagado da historiografia
tradicional.
Em
“A terra nos movimentos sociais” eles enfatizam a importância da luta de
segmentos indígenas na luta pelo direito à terra na antiga América espanhola;
luta cujas marcas se fazem visíveis até hoje, nos embates contra as
multinacionais e empresas do agronegócio em pleno terceiro milênio. Aliás, a
investigação histórica nos permite ver que idéias e conceitos como cidadania,
igualdade e estado moderno quando transpostos ao plano concreto da realidade se
mostra prenhe de contradições e incoerências, motivando por si só a eclosão de
uma série de conflitos entre diversos agentes sociais.
No
terceiro capítulo, os autores reconstituem com grande competência e clareza
todo o debate em torno do trabalho escravo desde o século XIX, no mundo – desde
as ações da Anti-slavery International
em 1839 - e no Brasil. Os autores demonstram que foi aqui que o conceito de trabalho escravo ganhou maior
repercussão, para o que muito contribuiu a larga experiência da escravidão. Já no
mundo como um todo prefere-se adotar a expressão trabalho forçado, “o que remete a uma especificidade do mercado de
trabalho contemporâneo”. Os autores chegam a tal conclusão após analisar o
amplo debate realizado por grupos, entidades e governos de diversos países por
mais de um século, desde o Slavery
Abolition Act de 1833, passando por acordos e tratados sancionados pela
Sociedade das Nações e pela Organização das Nações Unidas (ONU), até a
elaboração da Convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O
ponto principal desse capítulo é a problematização e crítica que os autores
fazem do termo trabalho escravo tal
como pensado no Brasil. Além de guardar certo vício paternalista – ao encarar o
trabalhador como incapaz e uma vítima congênita, o termo traz em si uma certa
absolvição do caráter exploratório do próprio sistema capitalista, colocando a
culpa nos ombros de uma suposta falta de caráter de patrões “desumanos”, por
isso, na avaliação dos autores: “a utilização de outra terminologia como
servidão por dívidas permite colocar a culpa no culpado e não na vítima, porque
implica o reconhecimento do capitalista como um explorador em potencial no
momento em que as condições de produção o demandem, e não simplesmente como uma
perversão particular ou um retorno às formas e práticas sociais do século XIX”.
No
quarto e último capítulo, os autores destacam a questão dos movimentos sociais,
analisando as suas relações com o Estado, a construção de identidades, a
organização e a construção da forma de ação social de nome protesto, a atuação dos pobres etc. Mais uma vez os autores
utilizam temas gerais como pano de fundo para a (re)problematização de
conceitos consagrados e – diríamos - ossificados em certo imaginário acadêmico.
Um dos mais notórios é certamente o do clientelismo.
E aqui os autores mais uma vez evidenciam como as elites políticas e sociais, e,
vasta parcela dos intelectuais acadêmicos (seja de “esquerda” ou de “direita”)
operaram com esse conceito em diversas análises sobre a relação entre Estado e
Sociedade Civil (em especial no chamado contexto de vigência do Populismo), com o estrito objetivo de
desqualificar, minimizar e despolitizar as ações de protesto e de intervenção
na política por parte das camadas populares, ou, da “gente pobre” das favelas,
periferias, subúrbios, morros, villas
e barrios.
Como
bem alertam os autores no tocante a participação desses pobres neste e noutros
capítulos de nossa história, mais frutífero do que o apego a conceitos
claramente pejorativos e estigmatizadores, é preciso ir fundo nesta história,
percebendo concretamente o que está em jogo, que “variáveis ingressam na
política dos pobres e mostram que eles fazem política, embora não da forma como
os partidos e os políticos tradicionais gostariam ou prescrevem”, até por que
eles “fazem política da forma como eles entendem que deve ser feita”.
Uma pena que a classe jornalística leia tão pouco. Com esse simples livrinho muita atrocidade deixaria de ser escrita. Melhor para o Justo Veríssimo (o do " - Quero que o pobre se exploda!"), que de sua catacumba vê tranquilo e satisfeito a reprodução do seu legado nos jornais da grande imprensa. O que diz muito do espírito liberal-autoritário até hoje reinante em nossas elites "letradas"....
Leonardo Soares dos Santos é historiaDOR.
Uma pena que a classe jornalística leia tão pouco. Com esse simples livrinho muita atrocidade deixaria de ser escrita. Melhor para o Justo Veríssimo (o do " - Quero que o pobre se exploda!"), que de sua catacumba vê tranquilo e satisfeito a reprodução do seu legado nos jornais da grande imprensa. O que diz muito do espírito liberal-autoritário até hoje reinante em nossas elites "letradas"....
Leonardo Soares dos Santos é historiaDOR.
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