Em "Greve e nada mais" (14-09-2015), a Folha de S.Paulo oferece um espaço ridículo ao que de fato tem acarretado a asfixia do ensino público universitário. O que ela mesmo identifica, como "deterioração de equipamentos, falta de produtos básicos para pesquisas e eliminação de serviços terceirizados" aliados ao corte em "11% a rubrica de custeio do MEC" em nada se comparam com o que o jornal entende como um crime de lesa-pátria, que foi a expansão do ensino universitário via aumento do número de alunos matriculados.
Vejam que
para o jornal, o corte em si não é algo tão negativo. O problema é o governo
insistir investindo no ensino público. Tanto é assim que o mesmo diz
reconhecer que os violentos cortes estão inseridos numa "conjuntura
economico(sic) em que as restrições se impõem com urgência extrema" e que
o "Ministério da Educação por certo não dispõe de recursos capazes de contentar
a comunidade universitária".
Mais
adiante, o jornal reitera o cenário de um governo aflito em voltar a investir
nas universidades, mas - coitado - não tem dinheiro:
reivindicam-se, com nula disposição
para negociar, compensações salariais num momento em que, como tampouco se
desconhece, é nula a capacidade governamental para o aumento de gastos.
Ora, o
jornal se esquece ou finge não lembrar que foi dentro da mesma conjuntura econômica
que o MEC sem recursos aumentou de 12 para 18 bilhões a proposta de gasto com o
FIES, para seguir financiando o enriquecimento dos donos de faculdades
privadas, ou, um grupo seleto deles.
Todos
sabemos da campanha declarada do jornal em prol da privatização das
universidades públicas. Combate feito por ela com virulência no âmbito
paulista, visando principalmente a USP e a Unicamp, que a leva a produzir
editoriais frequentes nesse sentido. Apresentando o funcionalismo público como
uma horda de preguiçosos, parasitas como que saídos das crônicas de Nelson
Rodrigues, verdadeiros barnabés dorminhocos, relapsos e desprovidos de qualquer
empatia.
O cinismo é
tão deslavado, que sem nenhuma cerimônia, o jornal nos lança na cara esse
trecho:
Em si, o corte talvez não tivesse
impacto tão visível se uma radical renovação na rotina administrativa das
universidades fosse empreendida - com enxugamento da máquina burocrática.
Novamente, vemos o servidor público associado a um obtuso burocrata, sempre disposto a pendurar o
paletó na cadeira e sair para tomar cerveja no boteco mais próximo, enquanto a
viúva paga seus proventos por nada fazer para o próximo.
Mas o grande
alvo nesse editorial em particular, onde o que se aborda é a questão das greves
nas universidades federais é o movimento grevista.
E como em várias
outras ocasiões, e não apenas neste veículo, mas em todos os vários outros da
grande imprensa (curiosamente, os mesmos que em 1964 saudaram a "restauração"
da democracia com o movimento desencadeado pelos militares em 1 de abril), a
greve é retratada como uma questão infectocontagiosa, a ser combatida com todos
os meios disponíveis da ciência médica. Perspectiva que se revela nos termos
supostamente inocentes, como nesse trecho
Não é de agora, entretanto, que
movimentos de greve se alastram pelas universidades públicas.
De epidemia
leprosa, a greve ganha contornos de ação criminosa de delinquentes:
Os estudantes tornam-se reféns de
uma mobilização que, em vez de surgir como último e excepcional recurso,
funciona como expediente usual, alimentado ao sabor das convicções extremadas
de minúsculos.
Para além
das imagens desqualificantes, a Folha procura atacar o próprio direito de greve
apelando para desvarios lógicos. Num universo que chegou a ter mais de 40
universidades aderindo ao movimento grevista, toda a comunidade acadêmica aí compreendida, totalizando centenas de milhares
de pessoas se viram inadvertidamente de joelhos, com um fuzil apontado para
suas cabeças sob a ordem de "minúsculos grupos militantes".
Como peça retórica, inspirada em filmes do Zé do Caixão, o editorial da
Folha tem lá o seu charme, mas como analise do que realmente se passa no ensino
universitário, uma calamidade intelectual.
E a coisa fica mais deplorável quando o jornal debita todo o prejuízo
sofrido pelo alunado (desorganização, atraso da formatura etc.) ao movimento
grevista.
A impressão que fica é que se não fosse por conta da greve, o(a)s
discentes estariam felizes em enfrentar um ano letivo em sua universidade sem
papel higiênico, luz, com terceirizados recebendo em atraso, sem segurança, sem
bolsas, sem eventos acadêmicos (por conta do corte de financiamentos), sem auxílios
para pesquisa, nenhum material de laboratório etc. Mas enfrentando tudo isso
com um sorriso no rosto e a fé em dias melhores. E com o sentimento de que tudo
tem lá o seu propósito.
Teríamos tão somente a universidade transformada num verdadeiro caos, mas sem greve. Greve de
extremistas, vândalos, viciados em totalitarismo.
Só uma pequena auto-correção: universidade sem papel higiênico? Ah, isso
não, porque temos a Folha de S.Paulo.
Leonardo Soares é professor de História da UFF