Ah, o direito à
privacidade! Bem construído no processo de elaboração da figura do “indivíduo”,
o grande herói moderno de quase todas as narrativas, indispensável para pensarmos a sociabilidade
nos últimos séculos, vem sendo espantosamente erodida. Lembrando Jon Elster, há
novos cantos de sereias para o Ulisses do capitalismo maduro. E o canto para
Ulisses nesse momento é apresentado com os tons e acordes que satisfaçam, em
diversas manifestações, os tímpanos narcísicos. A industria cultural elaborou
um novo tipo “legítimo”, que é o da celebridade instantânea, e este elemento
replica em manifestações cotidianas. Ora, ver-se e ser visto em uma tela
tornou-se possibilidade acessível a diversos estratos sociais. Mesmo que seja
por alguns segundos, mediante tarefas insignificantes para a maioria, e que
caia no mais profundo e mortal esquecimento tão logo tenham sido vistas. Sim,
vistas. Jamais compreendidas.
Compreendo este
processo enquanto paradoxal. Há uma profunda complexificação dos direitos civis
nos dias que correm, em paralelo a um tipo de exposição que faria mesmo a
imaginação orwelliana simplesmente corar. Não há como um observador ficar
impassível diante das novas formas de socialização, com sua torrente de
hierarquia de valores sendo apresentada envolta em novos e atraentes formatos,
a despeito dos códigos jurídicos avançarem, sempre atrás da sociedade, em
legislações protetivas. Aí, como o herói da Odisséia, cabe optar se iremos
colocar cera de abelhas em nossos ouvidos ou iremos atender ao sedutor apelo
das sereias virtuais. Todavia esta é uma escolha voluntária. Algo diferente
ocorre no caso “Google”.
Venho
acompanhando notícias sobre as “novas políticas de privacidade” da megaempresa
Google. E sabemos o que os cantos sedutores implicam nas redes sociais: em
última instância, para satisfazer o desejo narcísico de exibir o cachorrinho
recém adquirido ou o churrasco de família no fundo de quintal, paga-se o
tributo da perda da privacidade entregando informações que podem ser cruzadas
atendendo os objetivos de geração de armas de marketing cada vez mais eficazes.
As preferências pessoais estão ali, onde podem ser feitos surveys não autorizados detectando perfis de consumidores para todo
tipo de finalidade. Mas, como disse, é opcional participar destas redes,
sobretudo as mais populares. Aos usuários cabe o ônus, aos proprietários o
bônus.
Mas, o caso
Google conta com nossa colaboração mais sutil e involuntária. Recomendo lerem o
texto postado no Portal Vermelho aqui onde há explicações pragmáticas para
evitarem, se assim desejarem, terem suas pesquisas e demais atividades
ocorridas sob a grife “Google” devidamente rastreadas e indevidamente
utilizadas. Há enorme alvoroço, naturalmente, sobre esta ação da empresa,
gerando controvérsias inclusive no atual governo dos EUA. Veremos onde iremos
parar.
Evidente que
nossos dados são rastreados pelo Estado enquanto uma ação necessária para fins
fiscais/tributários. O problema aqui é a finalidade. Enquanto que a entrega de
registros financeiros decorre enquanto resposta ao nosso Leviatã, mediante uma
série de serviços e bens disponibilizados por este no árduo processo de
gerenciamento de demandas coletivas, o Google buscaria justamente algo mais do
que extratos bancários individuais. A utilização da internet e de seus
serviços, mormente para fins sócio-culturais, entrega ao novo-Leviatã virtual
nada mais que nossas preferências, nossa forma de pensar... Se lemos revista “X”
ou “Y”, qual nosso time de coração e nossa literatura predileta. Em suma, aquilo
que nos individualiza e nos revela em maior grau do que os dividendos
apresentados para a Receita Federal anualmente.
O alcance deste
tipo de informação para as empresas que ofertam bens e serviços desta natureza não
são mensuráveis. Só adianto que os menos cuidadosos serão vistos como
consumidores em potencial e não serão vistos como cidadãos portadores de
direitos. Há a possibilidade de não colaborar voluntariamente com esta
empreitada. Mais uma vez, sartreanamente, o mundo de escolhas está apresentado.
PS: Ilustra este texto o quadro “Ulisses e as
sereias” de Herbert James Draper. Maiores informações sobre outros trabalhos do
artista podem ser obtidas aqui no Blog do Hermes.
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