Salvação. Redenção.
Progresso material e espiritual. Evolução cultural. Uma vida de abundância. Sem
sofrimentos. Plenamente racional. Lógica. Sem sustos. Sem atropelos. Basta que
trabalhemos. Que sigamos o que é lógico e sensato. Como um simples dever de
casa.
É como somar dois mais
dois. É como resolver uma equação, bem simples e sem muito esforço. É como
ligar à lápis numa folhinha em branco, com um simples riscado, o ponto A ao
ponto B. Não há como a vida ser ruim, pois tudo passa a ganhar sentido, a ter
um sabor especial, pois que passamos a viver e experimentar a uma prática
assentada na verdade, na pureza das idéias e valores.
Trabalhar, trabalhar e
trabalhar. Basta que façamos isso diuturnamente. Não, mas é preciso algo mais:
é preciso não dar ouvidos ao pensamento contrário que insiste em demonstrar que
a realidade da vida e do mundo é bem distinta. É preciso praticar o que
acreditamos sim, mas, muito importante também – crucial, eu diria: é acreditar
cegamente no que dizemos acreditar. Mais do que acreditar. É preciso crer. Sem
piscar, sem hesitações, sem respirar até.
É proibido duvidar até em sonho. É preciso
não dar brecha ao iníquo. Até porque, que
las hay, las hay !
E como estamos falando
de fé. E fé não se discute, é preciso se nutrir todo santo dia da verdadeira
palavra. E acreditar nela de maneira cega.
Há crise, há
dificuldades e calamidades sociais e econômicas inauditas? A solução é mais
mercado, mais mercado livre, mais mercado desregulamentado. “Mas, ousa
questionar uma pobre alma sem fé e distante da Verdade, o que comprova a
validade de tais afirmações?”. O profeta da palavra nem perde tempo em
responder e continua sua pregação:
Há falta de crescimento
(do capital e das fortunas das burguesias financeira e industrial, diga-se de
passagem), um estado eterno de estagnação, sem nenhum horizonte de melhoria? É
preciso mais iniciativa privada, mais gerenciamento empresarial na condução da
política econômica, menos gastança com política pública. Numa palavra: mais
racionalidade e menos irracionalidade na hora de digitar na planilha a ser
enviada ao congresso (a Casa da política, dos interesses mesquinhos de grupos
de interesse, onde o povo faz ouvir e ressoar alguns de seus uivos e sussurros,
em síntese: o lugar dessa praga, desse mal chamado Democracia...). O profeta já
irritado com possíveis questionamentos e indagações maliciosas, desenha numa
tábua: vejam ignaros sem fé: dinheiro para mercado = Racional, já Dinheiro para
Sociedade = Irracional.
Mas não é que um descrente
encapetado tem peito para retorquir: “Mas há exemplos e situações concretas que
demonstram a viabilidades disso que proferes, oh!, oráculo que tudo sabe e vê?”
E o já colérico profeta
sentencia: você quer provas, quer gráficos, dados estatísticos, análises
concretas, devidamente embasadas, estudos sérios, razoavelmente equilibrados,
desapaixonados? Lembrem-se das palavras reveladas nas escrituras: há coisas que
os homens nunca irão saber. E não devem e não podem saber. Nesse momento o que
seu espírito e sua mente menos precisam são números, provas e contra-provas,
registros estatísticos, questões, problemas, teses e hipóteses. Diga um não
rotundo a tudo isso. Repreenda o que não pertence ao propósito Dele. Repreenda
as astúcias do inimigo (de bafo estatal e popular). Deixe disso, entregue a tua
vida à Mão Invisível, que do resto Ela Cuidará.
O que importa é que
você saiba, basta que você creia, pratique e medite incessantemente as
seguintes fórmulas espirituais: para todo mal existente, para toda sorte de
sortilégios, de aflições que angustiam a tudo e a todos, não há outro remédio
que mais desregulamentação, mais mercado livre, mais mercadorização das
relações sociais, menos estado, menos gasto com saúde e educação, mais
globalização, mais privatização.
Mas do que se trata
tudo isso: religião? Fundamentalismo? Crendice barata ou popular? Fanatismo
fora de época ou de lugar? Radicalismo dogmático?
Nada disso: é o
conjunto de alguns dos principais postulados do argumento científico liberal.
Ciência pura!
Leonardo Soares dos
Santos é historiador e professor da UFF.
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