Dentre
tantas ofensas perpetradas contra a verdade histórica pela cambada saudosa da
Ditadura e de seus crimes contra a humanidade, uma em especial impressiona pela
fachada tecnocrática e um certo ar de objetividade – a de afirmar que a
Revolução “redentora e gloriosa” fez o que fez (destruindo, massacrando e
torturando milhares de pessoas), mas logrou modernizar o Brasil, em especial a
sua infraestrutura e o campo (revolução agrícola). Ela – a Ditadura - matou sim (“- E daí?”), mas
melhorou esse país, fez as reformas necessárias, fez ele mais forte, mais
pujante. Quanto engodo.
Em
outra oportunidade já mostrei o quanto o primeiro aspecto não passa de uma
tentativa de distorcer e vilipendiar o argumento histórico, num tipo de ato
intelectual que beira a delinquencia. Os chamados grandes empreendimentos da
cúpula empresarial-militar não serviram para outra coisa que não a
destruição ambiental por onde passou, o extermínio de diversas espécies da
flora e da fauna; obras superfaturadas, nas quais a fraude campeava, a
corrupção idem e – como se já não bastasse nesse bizarro panteão de atrocidades
– até genocídios foram meticulosamente planejados e executados, como o comprova
as investigações sobre a construção de rodovias nas regiões Norte e Nordeste,
onde segundo cálculos ainda bastante incompletos, cerca de 8 mil índios foram
brutalmente chacinados de modo a “limpar” as regiões. Ou seja, tais obras foram
magnânimas apenas para quem lucrou com ela (os magnatas dos setores da
construção civil, de logística, energia, comunicações etc.) – só que a custo de
muito sangue, balas, foiçadas, bombas, roubos, propinas e dor, muita dor.
Mas
o segundo aspecto, o da suposta modernização agrícola, ainda resiste no
imaginário das carpideiras da Marcha da Família, como se fosse um fato
inegável. No fundo ela não é mais do que mais uma empulhação – tão típica da
parte dos paladinos desse regime de horror. Basta uma simples e prosaica
olhadela em alguns fatos desse hediondo período.
Longe
de modernizar, o regime militar se mostrou tão incompetente na condução da
questão agrária que praticamente o país regrediu em todos os índices no que
tange à agricultura e à política fundiária.
Muito
ao contrário da propalada melhoria, as relações de trabalho atingiram um grau
de precarização de fazer inveja aos mais odientos regimes feudais ainda
existentes. O problema é que na Ditadura o trabalhador rural além de se ver
barbaramente aviltado, tanto na exploração de sua mão de obra como nas
condições deploráveis em que trabalhava, tinha que sofrer e apanhar calado.
Era-lhe proibido o direito de manifestação, de protesto e organização. Só lhe
sobrava os sindicatos patronais ou pelegos, que mais pareciam clubinhos de
dança e centros sociais que distribuem brinquedos – ou seja, o mesmo que nada.
Se
ao tempo de Vargas e de vários governos que o sucederam - e mesmo com muitos
problemas e percalços-, um vigoroso movimento camponês ia se constituindo (por
meio principalmente dos sindicatos rurais e das Ligas Camponesas), até por isso
várias demandas, reivindicações e denúncias chegavam ao conhecimento da opinião
pública. O que se dava por meio de jornais, rádios, lideranças sindicais e
legislativas (senadores, deputados, vereadores) e dos próprios trabalhadores
rurais que se lançavam em inúmeras greves, manifestações em centros urbanos,
protestos, ocupações de assembléias e sedes do poder executivo etc.
Nos
anos 60, mesmo que com muitos obstáculos e carências, as categorias do campo já
haviam conseguido uma lei que liberava e regulamentava a criação de sindicatos
rurais. E com todo o seu poder de pressão, que já ressoava pela maior parte do
país, eles conseguiram que vários setores da elite e da classe política
atentassem sobre a urgência de uma reforma agrária. Esta era efetivamente uma
questão da agenda política daquele momento, capaz de trancar a pauta do
Congresso. O próprio presidente Jango, não à toa, sentia-se pressionado a
fazê-la. Então veio o Golpe de 1964 e tratou de solapar todo esse campo de
debates e lutas. Castrou os sindicatos; ceifou lideranças políticas; dizimou as
Ligas; perseguiu, torturou e assassinou militantes camponeses – aos montes. O
campo ficava aberto a toda sorte de desumanidades por parte dos grandes
proprietários e companhias capitalistas. Agora eles podiam explorar o
trabalhador até o talo. Com total tranquilidade e irrestrita impunidade.
O
Regime também abriu a porteira, como nunca, para um processo gigantesco de
grilagem de terras. Foi à seu tempo, quando a desregulação e omissão atingiram níveis criminosos,
que figuras do baronato fundiário se apossaram de terras que alcançavam a
extensão de alguns países da Europa. E olha que a Cúpula golpista, com poucos
meses usufruindo do seu poder, ainda teve a coragem de apresentar um projeto de
reforma agrária, que propalava a chamada modernização do campo, mas que nunca
seria executado. Pelo menos a modernização que interessava à sociedade. Já os
latifundiários se fartaram com a exploração de trabalho escravo e com liberdade
para abocanhar a seu bel prazer as terras da Amazônia e do Cerrado. E várias
tribos indígenas foram, por tabela, dizimadas. Simples assim.
Se a produção agrícola teve vultoso
crescimento (principalmente produtos como café e açúcar), e alguns setores
tenham conhecido um notável grau de modernização técnica e mecanização de suas
atividades, por outro, não é menos importante que se destaque que é exatamente
nesse período que surge no cenário a figura do bóia-fria. Figura mais
emblemática da precarização, esbulho e humilhação que assolavam as relações de
trabalho nas unidades agrícolas na época do Regime. É significativo que ele
também fosse chamado com o singelo nome de “pau-de-arara”.
Ou seja, em alguns setores o avanço
tecnológico parecia ser inegável, mas todo ele alimentado por relações
praticamente feudais e pré-capitalistas. O sociólogo Octavio Ianni é enfático
nesse ponto:
“À medida que se desenvolve, a agroindústria produz e reproduz o
bóia-fria, volante ou pau-de-arara. O bóia-fria é a forma mais desenvolvida em
que se expressa o caráter das relações de produção na agroindústria canavieira
(Origens agrárias do Estado brasileiro, p. 72).”
Cabe ainda lembrar que a
incompetência congênita da Ditadura na administração da política fundiária
levou o caos ao abastecimento de algumas cidades. O caso da cidade do Rio de
Janeiro é emblemático. Até a data do Golpe contra a Democracia em 64, diversos
setores da sociedade carioca lutavam por iniciativas e projetos que
preservassem o Cinturão Verde da cidade. Este vinha sendo engolido pelo capital
imobiliário com intensidade desde a década de 40. Com muito custo aqueles
setores buscaram contrarrestar o avanço dos grileiros e negocistas do ramo
imobiliário a partir de articulações com lideranças e partidos da esquerda
(PCB, PSB e PTB), com a imprensa partidária da época (Imprensa Popular, O
Radical, O Popular, Novos Rumos), e – principalmente – com muito protesto,
manifestação e pressão junto aos centros de poder da época existentes na cidade
(Senado, Câmara Federal e Municipal etc.).
Tudo isso foi jogado no ralo pela
truculência e selvageria dos que tomaram o poder em 1964, que simplesmente
cassaram, perseguiram e prenderam a maioria daquelas lideranças e militantes
partidários. Fecharam suas organizações e entidades. Interditou o dissensso.
Calou a crítica. E quem pagou o pato foram os pequenos lavradores do chamado
Sertão Carioca (atual zona oeste) e, de quebra, a população urbana e suburbana.
Os quais sem um Cinturão Verde que a servisse de alimentos mais em conta, com
abundância, acabou ficando refém da comercialização de produtos de outros
estados, o que se refletia na qualidade e no preço dos produtos: mais escassos
e mais caros.
Por outro lado, a Ditadura não movia
uma palha para impedir o amplo processo de retalhamento e grilagem das terras
da Zona Oeste, que dizimavam com a agricultura local e só serviam para a
especulação imobiliária. Isto é, a agricultura era destruída estupidamente, sem
dirimir um pingo que seja o problema habitacional que já se avolumava naqueles
anos. E o abastecimento de gêneros no Rio um completo caos.
Com a Ditadura - e o consequente sequestro das liberdades
democráticas, seguido de choque e estrangulamento - todo a farra dos
especuladores imobiliários encontrou terreno propício. Não havia quem ou o quê
que pudessem questioná-los. Tava tudo dominado!
Uma total vergonha. O Regime que
praticamente reconsagrava o trabalho escravo no campo, omitia-se vergonhosamente
diante da destruição de cinturões verdes no país.
Como alguém pode sentir saudades de
um câncer desses?
Leonardo Soares é professor de História da UFF.
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