Tentem imaginar a cena.
Num certo país ao norte da América do
Sul, um dos governos mais autoritários, totalitários, comunistas e chavistas do
mundo (sim, a imprensa na hora de elaborar conceitos só perde para a filósofa
Valeska Popozuda) manda enviar tropas federais para conter uma onda de
protestos sangrentos, violentos e de contornos fascistas por parte do segmento
mais conservador da sociedade, a classe média e a elite econômica – bastante
insatisfeitas com a aproximação das classes “mais baixas” na estrutura social
como decorrência das políticas sociais implementadas ainda ao tempo de Chávez,
e que de fato foram uma das mais bem sucedidas do mundo, mas, claro, vistas
como a manifestação de um satânico projeto de implantação do comunismo
bolivariano.
Tais segmentos fascistas querem fazer a
roda do tempo girar para trás de novo. Ver o populacho regredir, parar de falar
de política e de fazê-la acontecer em favor de seus interesses. Que o povinho
preto, pobre, favelado e mulambento volte a ser submisso; que volte a ter
consciência do seu lugar (bem subalterno) e se comporte como tal.
Para impedir que a vaga fascista de
extrema-direita viceje o governo de Maduro fez cumprir as prerrogativas que a
Carta Constitucional lhe confere. Botou as tropas nas ruas para conter o
terrorismo dessa direita.
Mas mal as tropas pisaram o solo das
cidades aterrorizadas pela sanha extremista da “oposição” fascista, o pasquim
global do golpismo iniciou uma virulenta ofensiva midiática de
contra-informação, proclamando para o quatro ventos que se tratava de mais uma
demonstração de autoritarismo de um dos governos mais ditatoriais da história
recente da América Latina. (Seria cômico se não fosse
trágico se isso não ocorresse ao mesmo tempo que aqui se comemora os 50 anos do
Golpe Militar de 1964 – o qual contou com extremada simpatia e apoio do pasquim
global.)
O envio de tropas é mais um claro
indício do desprezo que o governo Maduro demonstra pelos “verdadeiros valores
democráticos”, a sua recusa em aceitar conviver e respeitar quem lhe faz
“oposição”, o seu ódio pela pluralidade de idéias e opiniões – mais uma vez, o
cinismo aqui dá o tom, ainda mais vindo de um veículo comprometido com a defesa
radical do monopólio das telecomunicações e do uso aberrante da máquina
judiciária contra os seus concorrentes e opositores.
Bom, estando certo ou errado, essa é a
opinião do pasquim e a forma que ele encontrou para enaltecer os símbolos dessa
nossa conhecida de nome Democracia.
Mas muito pior do que estar errado, o
pasquim se mostra um incurável órgão golpista esquizofrênico.
A mesma iniciativa que na Venezuela é
vista como um golpe contra a cidadania e os valores democráticos, são tidos e
havidos na mais nova ocupação militar das favelas do Rio como expressão do mais
desbragado comprometimento com a... cidadania e os valores democráticos.
As tropas das forças armadas ocupam
novamente algumas das favelas cariocas, com armas em punho, com escopetas
apontadas indiscriminadamente para as cabeças dos seus moradores. Mais uma vez
se consagra a idéia de que os moradores pretos e favelados devem ser alvos ou
de políticas públicas pobres (e de quinta categoria, posto que voltada para cidadãos de segunda classe) ou de repressão armada direta. Pois só assim para esse povinho se
colocar no seu lugar. É essa a política que resolve a situação desse tipo de raça.
E escola? Cadê hospital, posto de
saúde, coleta de lixo, esgoto, água potável, banco, correios, segurança,
teatro, cinema, biblioteca? Cadê a cidadania? Cadê a Justiça? Cadê a Liberdade?
Cadê o Estado de Direito? Cadê os direitos? Cadê Amarildo?
Mas vocês só podem estar brincando? –
assim indagaria o pasquim da Família (da Zona Sul) Com Deus.
É muito estranho que para um jornal com
esse tipo de mentalidade, que algumas categorias sociais (e raciais),
possam ter a audácia de querer algo mais do que um prato de comida e uma cama
para descansar o esqueleto.
Política pública e social não é para
qualquer um. Política para pobre, a verdadeira, a mais eficaz é aquela que se
baseia no poder do fuzil e no peso de tanques e caveirões. E nada mais. Se na
pátria de Maduro tal iniciativa é abominada, aqui, ela é prontamente festejada
pelo pasquim e seus companheiros de quadrilha midiática.
As ações militares que subjugam e
impõem medo aos cidadãos são apresentadas como a reação necessária das forças
de segurança contra os “inimigos” da paz, da cidade e dos cidadãos decentes.
Mas se olharmos com mais atenção, vamos
perceber que longe de incoerente, o pasquim faz uso de um argumento de uma
lógica impecável, de uma coerência cartesiana: a democracia no mundo é
perfeita, o que estraga é a droga do pobre! Tanto aqui como na Venezuela.
Assim pensando, a mídia golpista e elitista sedimenta o senso comum que ceifa vidas e famílias. Essa mídia é responsável sim pelos Amarildos e Cláudias de todas as noites. Essa mídia está toda suja do sangue dessa gente. Mata com impunidade, assim lhe permite a falta de democracia dos meios de comunicação desse país.
Leonardo Soares é historiador.
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