sábado, 19 de setembro de 2015




Em "Greve e nada mais" (14-09-2015), a Folha de S.Paulo oferece um espaço ridículo ao que de fato tem acarretado a asfixia do ensino público universitário. O que ela mesmo identifica, como "deterioração de equipamentos, falta de produtos básicos para pesquisas e eliminação de serviços terceirizados" aliados ao corte em "11% a rubrica de custeio do MEC" em nada se comparam com o que o jornal entende como um crime de lesa-pátria, que foi a expansão do ensino universitário via aumento do número de alunos matriculados.

Vejam que para o jornal, o corte em si não é algo tão negativo. O problema é o governo insistir investindo no ensino público. Tanto é assim que o mesmo diz reconhecer que os violentos cortes estão inseridos numa "conjuntura economico(sic) em que as restrições se impõem com urgência extrema" e que o "Ministério da Educação por certo não dispõe de recursos capazes de contentar a comunidade universitária".

Mais adiante, o jornal reitera o cenário de um governo aflito em voltar a investir nas universidades, mas - coitado - não tem dinheiro:

reivindicam-se, com nula disposição para negociar, compensações salariais num momento em que, como tampouco se desconhece, é nula a capacidade governamental para o aumento de gastos.

Ora, o jornal se esquece ou finge não lembrar que foi dentro da mesma conjuntura econômica que o MEC sem recursos aumentou de 12 para 18 bilhões a proposta de gasto com o FIES, para seguir financiando o enriquecimento dos donos de faculdades privadas, ou, um grupo seleto deles.

Todos sabemos da campanha declarada do jornal em prol da privatização das universidades públicas. Combate feito por ela com virulência no âmbito paulista, visando principalmente a USP e a Unicamp, que a leva a produzir editoriais frequentes nesse sentido. Apresentando o funcionalismo público como uma horda de preguiçosos, parasitas como que saídos das crônicas de Nelson Rodrigues, verdadeiros barnabés dorminhocos, relapsos e desprovidos de qualquer empatia.

O cinismo é tão deslavado, que sem nenhuma cerimônia, o jornal nos lança na cara esse trecho:

Em si, o corte talvez não tivesse impacto tão visível se uma radical renovação na rotina administrativa das universidades fosse empreendida - com enxugamento da máquina burocrática.

Novamente, vemos o servidor público associado a um obtuso burocrata, sempre disposto a pendurar o paletó na cadeira e sair para tomar cerveja no boteco mais próximo, enquanto a viúva paga seus proventos por nada fazer para o próximo.

Mas o grande alvo nesse editorial em particular, onde o que se aborda é a questão das greves nas universidades federais é o movimento grevista. 

E como em várias outras ocasiões, e não apenas neste veículo, mas em todos os vários outros da grande imprensa (curiosamente, os mesmos que em 1964 saudaram a "restauração" da democracia com o movimento desencadeado pelos militares em 1 de abril), a greve é retratada como uma questão infectocontagiosa, a ser combatida com todos os meios disponíveis da ciência médica. Perspectiva que se revela nos termos supostamente inocentes, como nesse trecho

Não é de agora, entretanto, que movimentos de greve se alastram pelas universidades públicas.

De epidemia leprosa, a greve ganha contornos de ação criminosa de delinquentes: 

Os estudantes tornam-se reféns de uma mobilização que, em vez de surgir como último e excepcional recurso, funciona como expediente usual, alimentado ao sabor das convicções extremadas de minúsculos.

Para além das imagens desqualificantes, a Folha procura atacar o próprio direito de greve apelando para desvarios lógicos. Num universo que chegou a ter mais de 40 universidades aderindo ao movimento grevista, toda a comunidade acadêmica aí compreendida, totalizando centenas de milhares de pessoas se viram inadvertidamente de joelhos, com um fuzil apontado para suas cabeças sob a ordem de "minúsculos grupos militantes". 

Como peça retórica, inspirada em filmes do Zé do Caixão, o editorial da Folha tem lá o seu charme, mas como analise do que realmente se passa no ensino universitário, uma calamidade intelectual.

E a coisa fica mais deplorável quando o jornal debita todo o prejuízo sofrido pelo alunado (desorganização, atraso da formatura etc.) ao movimento grevista.

A impressão que fica é que se não fosse por conta da greve, o(a)s discentes estariam felizes em enfrentar um ano letivo em sua universidade sem papel higiênico, luz, com terceirizados recebendo em atraso, sem segurança, sem bolsas, sem eventos acadêmicos (por conta do corte de financiamentos), sem auxílios para pesquisa, nenhum material de laboratório etc. Mas enfrentando tudo isso com um sorriso no rosto e a fé em dias melhores. E com o sentimento de que tudo tem lá o seu propósito.

Teríamos tão somente a universidade transformada num verdadeiro caos, mas sem greve. Greve de extremistas, vândalos, viciados em totalitarismo.

Só uma pequena auto-correção: universidade sem papel higiênico? Ah, isso não, porque temos a Folha de S.Paulo.








Leonardo Soares é professor de História da UFF