Mas por qual razão esse
homem mudou tanto?
José Serra, natural de São Paulo
capital. Criado desde a mais tenra idade na região da Mooca, assim como o
Bixiga, um reduto italiano na cidade. Desde jovem, trabalhava com o pai
verdureiro na feira. Carregando e empilhando caixas e caixas de nabo, mandioca,
pepino, banana e melão. A feira nos dias que Zezinho trabalhava devia ser um
alvoroço só. FHC jura que ele sempre fora feio. A cara do Fester. Pobre daquela
senhorinha que se deparava com ele na feira.
Mas Zezinho cresceu. Com muito
sacrifício completou seus estudos. E desde sempre, com os olhos esbugalhados
que Exú lhe deu, já aprontava, agitava, mobilizava, organizava a rapaziada nos
grêmios de antanho. Ainda jovem, só pensava naquilo: organizar a massa em prol
de uma vida melhor. Fosse na escola, em sua rua, nas arquibancadas do Palestra
Itália ou até em sua igreja.
Aliás, quando iniciou na vida
estudantil universitária, como estudante de engenharia civil da USP buscou
aliar militância e fé (Xiii....). Como católico de boa cepa, mas engajado nas
coisas do mundo, foi um dos articuladores e fundadores da antiga Ação Popular
(AP). Corrente da mesma igreja bastante engajada nas questões sociais e que
namorava um certo socialismo humanista. Tinha também Betinho como companheiro e
se inspirava em figuras como Paulo Freire.
Serra buscou se inserir também na
UNE, tornando-se seu presidente poucos meses antes do golpe. Ali tinha um
discurso dos mais radicais – nem digo para a época, mas muito mais para os
tempos insossos de hoje -, propugnando pelo aprofundamento das reformas de
base, em especial da reforma agrária. Era adepto ferrenho da ampliação dos
fundamentos do modelo econômico de forte matiz cepalino. E que foi consagrado
pelo nome de “nacional-desenvolvimentismo”. Serra defendia com unhas e dentes
as propostas de Celso Furtado, de total independência do capital e mercado
nacionais, baseando-se para isso na tese industrialista, perfumada de muita
ingenuidade, mas de efeitos políticos e simbólicos tremendos num cenário ainda
muito influenciado pelo espectro getulista.
Com o Golpe de 64, Serra teve que se exilar –
veja que pobre coitado – em Paris! Voltaria poucos anos depois ao Brasil.
Ficaria no Rio, muito pouco tempo, na casa de Arthur da Távola (pseudônimo de
Paulo Alberto de Barros, um dos donos da Estácio de Sá). E de lá voaria para o
Chile. Onde conheceria Monica. Psicóloga. Pois não é que essa mulher conseguiu
se apaixonar pelo Zezinho da Mooca. Pior: teve peito para se casar com ele (mas
que diabos de paixão cega é essa meu Deus do céu?).
Entretanto, fato comum nesses
arroubos da juventude, Mônica embarrigou antes da hora. Uma ex-aluna disse que
ela disse que teve que abortar. Isso mesmo: a mulher de Serra teria abortado.
Claro que isso não é verdade...
Não obstante, Serra se
concentrava numa importante frente: denunciava do Chile as torturas e mortes
perpetradas pela ditadura militar no Brasil. E ainda encontrava tempo para
fazer seu mestrado em Economia na Universidade do Chile – ainda pública apesar
de Pinochet. Foram tempos difíceis. Muitos anos longe do Brasil. Serra ainda
passaria um tempo nos EUA. Com a redemocratização anunciada pelos movimentos
populares desde o final da década de 70, veio então a chance de construir um
novo Brasil. Mas como isso poderia se suceder? Pensava Serra. O que havia ainda
de puro, inocente, de autêntico naquele menino folgazão dos tempos da UNE? O
que de radical ainda temperava o sangue ítalo-paulista desse jovem palmeirense
decidido desde sempre a mudar os destinos de seu país, embalado pela fábula
nacional-desenvolvimentista, mas com vislumbres de engrandecimento social?
Serra sabia que teria que ter
paciência. A volta da democracia não bastava. Havia ainda um longo caminho a
ser percorrido. Mas paciência para lidar com as derrotas ele tinha de sobra.
Não esqueçamos que ele era e ainda é palmeirense. E passou anos esperando no
Chile. Para o azar de Monica...
Ainda na primeira metade da
década de 80 aderiu ao PMDB. Mas poucos
anos depois o núcleo duro paulista debandaria desse grande balaio de gato para
fundar o PSDB. Partido que desde sempre se mostrou ardoroso defensor da
democracia, mas que sempre lamentou o fato dela ser obrigada a tolerar a
participação de um agente chamado “povo brasileiro”. “Onde está o povo?” -
indagava com a costumeira malícia FHC na década de 70. Concepção aliás que era
alvo de vários embates no núcleo que fundaria o partido social-democrata(sic). Num depoimento anos
depois, FHC revelava que não fazia muita questão da implantação do voto direto
para presidente, pelo fato do povo ainda “não estar preparado para exercer esse
direito”. O “despreparo” adviria do endêmico analfabetismo, de anos de ditadura
e do legado nefasto do período populista (que, na sua ótica, teria promovido
mais alienação do que politização). Daí a decisão peremptória desse núcleo em
rechaçar a fusão com o PT. Não à toa, o próprio presidente-sociólogo justificaria tal atitude
recorrendo a uma concepção que sempre fora capital para os tucanos: “Não tinha
como. O PSDB é um partido de intelectuais”.
Mas a despeito das divergências
doutrinárias, Serra ia cavando o seu espaço. Foi assessor do governador Franco
Montoro e dava assim o primeiro grande passo para firmar a sua posição no
cenário paulista. Até que vem a década de 90. Um tempo de triunfo e glória
incomparáveis na história do tucanato paulista. No mesmo ano de 94 eles
conquistam o Palácio do Planalto e o Palácio dos Bandeirantes. Festa total. FHC
e Covas adotam reformas e mais reformas visando a desregulamentar a economia,
diminuir o Estado, privatizando até a medula o serviço público, arrochando o
funcionalismo e desmontando o parque industrial. E é o momento que os tucanos
começam a articular as alianças mais inusitadas, mais tresloucadas. “Esqueçam o
que eu escrevi”, já dizia na defensiva FHC. “Nesse país é impossível governar
sem o apoio dessa gente [das oligarquias]”, corroborava José de Souza Martins,
o sociólogo apaixonadamente tucano mais imparcial que já se viu (o MST que o
diga). O arco de pactos canhestros ia de ACM, passando por Sarney, Marco
Maciel, Inocêncio Oliveira até Maluf. Tudo pelo poder. Bem antes do PT, o PSDB
mostrava o quanto as alianças no Brasil beiram a pornografia.
São os anos da desertificação
neoliberal promovida pelo PSDB. Mas faltava algo nessa festança do capital
financeiro. Faltava tomar o poder numa área chave da geopolítica nacional.
Faltava abocanhar a maior cidade do país, a terra de Adoniran Barbosa, do SBT, onde
um chopp é pedido como “um chopis”, o cemitério do Samba – segundo Vinícius de
Moraes, o Poetinha. Estamos falando de São Paulo.
E quis Deus que em 1996 o PSDB
lançasse justamente como candidato à Prefeitura o tucano mais crítico aos rumos
da política econômica implementada pelo partido. Sim, Serra era bastante
resistente ao ardor privatista que havia impregnado as hostes tucanas. E essa
coragem, essa firmeza em manter uma posição tão controversa num contexto onde
tudo dava certo com o PSDB, lhe renderia algumas inimizades dentro do próprio
partido. Tanto que Serra era taxado de “estatista fora de época”.
Conta-se que isso era um dos motivos de FHC ter como um dos seus principais
prazeres falar mal do colega (sem cabelo) de partido.
Mas, como dizíamos, veio a eleição
de 1996. E Serra conseguiu perder para o fantoche de Maluf, o Pita. Aí não.
Assim não dá, assim não pode. Deve ter debochado FHC. Morrendo de rir com a
derrota de Serra. Foi a gota d’água. Ele entendeu que deveria mudar para
ganhar. Para chegar ao Pudê. Mas ninguém
poderia imaginar que ele mudasse tanto, tão radicalmente no sentido de um conservadorismo
verdadeiramente bizarro.
A virada de Serra, e sua
obstinação em manter a hegemonia tucana no estado de São Paulo e na capital, o
fez se curvar aos ditames da orgia privatista de seu partido. De uma hora para
outra, resolveu tentar fazer em São Paulo o que Pinochet fez ao longo de duas
décadas no Chile: privatizar tudo. Até o ar poluído da cidade se possível.
Mas a ambição desmedida pela
cadeira do Palácio do Planalto o fez ir além. Serra acabou caindo no colo de
setores os mais retrógrados e reacionários do espectro político do país. O
leque é amplo: monarquistas, TFP, neointegralistas, “viúvas” da Ditadura
Militar (Serra chegou ao ponto de numa palestra no Clube Militar em 2010 dizer
que a “Revolução” de 64 foi providencial para barrar a implantação de uma
“República Sindical”), Opus Dei e "verdes" (do PV). Não satisfeito, Serra tomou como bedel o Pastor Silas
Malafaia, o que diz que Deus criou “Macho e fêmea”. Passou a misturar fé e
política. Tratar eleitores como rebanho. Adotou uma postura de criminalização
do aborto (mulher que comete aborto tem que ir para a cadeia) assim como a dos
usuários de maconha. Direitos humanos, políticas públicas passaram a ser vistas
e tratadas pelo viés da criminalização. Da marginalização. Ele não discute mais
projetos. Seu discurso se resume a declarações de profissão de fé sobre valores
e concepções religiosas e moralistas.
Serra, o que mais falta você
fazer para destruir com sua história?
E agora esse novo fracasso. Mais uma coça para o PT. Uma surra pra ninguém botar defeito. Perdendo para um candidato inventado por Lula. Após cada derrota, há o risco de Serra mudar (sempre para pior). O que ele vai inventar de defender agora? O quê? Como diria uma certa namoradinha (dos pecuaristas): confesso, tenho medo. Muito medo diante de tanta indecisão, de tanta falta de rumo e prumo de um sujeito que perde e está perdido. Perdido para si mesmo. Que perdeu sua própria história.
E agora esse novo fracasso. Mais uma coça para o PT. Uma surra pra ninguém botar defeito. Perdendo para um candidato inventado por Lula. Após cada derrota, há o risco de Serra mudar (sempre para pior). O que ele vai inventar de defender agora? O quê? Como diria uma certa namoradinha (dos pecuaristas): confesso, tenho medo. Muito medo diante de tanta indecisão, de tanta falta de rumo e prumo de um sujeito que perde e está perdido. Perdido para si mesmo. Que perdeu sua própria história.
E agora, José?
José, pra onde?
Leonardo Soares, historiador e professô. E tem medo. Medo da reeleição da Patrícia Amorim como presidAnta do Flamengo.
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